Se há coisa que diverge o vinho português face aos de outros países, é a fórmula. Quando se pensa em algumas das mais importantes origens, normalmente há uma casta que assalta a mente. A razão prende-se com a escolha duma casta que melhor se comporta face aos desejados. Ainda que diferente, é claro que a prática portuguesa também visa e visava um objectivo.
Em Bordéus, a cabernet sauvignon domina, embora com a cabernet franc e a merlot com importância, mas é a primeira que é a mais presente e tem assinatura global. Há lotes, mas são para tempero da variedade principal. As castas tintas formam 80% do encepamento. Nos restantes, é a semillon e alguma sauvignon blanc, que marca a diferença.
Na Borgonha, a tinta favorita é a pinot noir e a branca é a chardonnay. O mesmo acontece em Champanhe. No entanto, num caso e noutro há mais variedades. Nas Côtes du Rhône, a syrah domina de longe, com uma pitada de viognier, cuja regra seja de 95% e 5%.
Nas regiões de Mosel (Alemanha) e da Alsácia (um bocado de Alemanha arrumado em França), a casta emblemática é a riesling. Em Tokay (Tokaji, na grafia moderna), é a furmint. Na Áustria, a grünerveltliner. Na Argentina, reina a malbec. No Chile, a carménère. Na África do Sul, a pinotage. Na Nova Zelândia, a sauvignon blanc. Na Austrália, a syrah(Shiraz, na grafia local).E na Califórnia – muito larga nas escolhas –, o mimetismo face a Bordéus dá realce à cabernet sauvignon.
A talhe de foice, países que fazem contrafacções de Vinho do Porto, como a Austrália e a África do Sul, têm encepamentos de castas portuguesas. Na Austrália, há, pelo menos, uma vinha centenária de touriga nacional. Na África do Sul, estão plantadas tinta barroca, touriga nacional e sousão.Talvez pela proximidade, a predominância em Espanha é menos visível. Na Rioja, a tempranillo (tinta roriz, ou aragonês, em Portugal) ocupa 60% das vinhas. Em Xerês (Jerez de la Frontera – Sherry), há três principais: palomino, pedro jiménez e moscatel (de Alexandria, o mesmo utilizado em Setúbal).
É também verdade que em Portugal existem regiões onde, para se obter o certificado de denominação de origem controlada (DOC), se verifica o predomínio duma casta. Em Colares, a ramisco (tinta) e a malvasia de colares (branco), ou, em Bucelas, a arinto. Na Madeira, há quatro (quatro, não uma, ou duas) que dominam: malvasia, boal, verdelho e sercial – porém, cada uma presa a uma escala de doçura específica e estabelecida por lei.
Durante séculos, o vinho foi uma importante fonte de calorias. Tinha a sua função lúdica, mas o vinho e os seus destilados eram alimento. Isso aconteceu até há poucos anos e ainda acontece em muitos casos.A ditadura do Estado Novo atribuía uma enorme importância à auto-suficiência alimentar. As várias campanhas do trigo levaram a práticas erradas, derivadas ao tipo de solos, relevo desvantajoso e substituição de culturas, nomeadamente silvícolas, mais rentáveis.Nesse esforço de ter auto-suficiência alimentar, a política do Estado passou também pelo apoio à vitivinicultura. É sobejamente conhecido o slogan“Beber vinho é dar o pão a um milhão de portugueses”.
Porque é diferente a escolha do modo de fazer uma vinha? A fome – e a pobreza a ela ligada – dos portugueses matou-se com vinho. Prato icónico é o das sopas de cavalo cansado: uma malga de vinho e pão embebido.
Além Pirenéus, há terra boa para a produtividade de cereais – ainda hoje se pode comprovar nas estatísticas de produção agrícola. Território para boas pastagens e criação de gado bovino leiteiro – a grande utilização de natas e manteiga não é acaso, ou bizarria. Além do porco, das ovelhas e das cabras, que também cá temos.
“Na Europa”, a fonte de calorias era mais variada e em maior quantidade. E no que nós somos bons? Em fruticultura e horticultura. Uma maçã e um repolho são pouco calóricos. Quem espreitar as contas da agricultura verá que as receitas das exportações de hortofrutícolas são mais elevadas do que as de vinho – ou eram até há pouco tempo. Fruto de maior abastança – virtude da produtividade – hoje fazem-se maroscas com a comida, que falseiam o original. Os cozidos eram ricos em hortícolas e leguminosas, alguma carne e um pouco de enchidos para dar gosto e gordura. Hoje é ao contrário: uma brutalidade de enchidos, muita carne, bastante batata, algum feijão, duas folhas de couve e um nabo.
Gulosos. Se comêssemos – tirando as brutalidades de vinho – como os nossos avós, seríamos mais saudáveis. Ainda que a medicina tenha e continue a fazer milagres que prolongam a vida e a sua qualidade. Já para não falar no exercício físico… Confesso que sou gordo e a crítica bate-me em cheio, com excepção dos hortícolas nos cozidos, que são o que mais aprecio.
A questão da riqueza
A insuficiência alimentar era endémica, daí a opção pelo vinho e seus destilados. O país é pobre desde a fundação, no século XII, apesar dos contributos, para o desenvolvimento da agricultura, efectuado por monges da Ordem de Cister, ou de São Bernardo.Ainda assim, a expansão para fora do território iniciou-se no século XV, concretamente em 1415, com a conquista de Ceuta – hoje pertencente a Espanha, devido ao seu governador não ter aderido à facção do duque de Bragança, que iniciou a quarta dinastia. Apesar de pertencer a Espanha, aquela cidade ainda usa as armas de Portugal como identificação heráldica.
O objectivo da conquista de Ceuta era arrebanhar o negócio das especiarias, que dali seguiam para diversos países europeus. Os produtos eram muito valiosos e os marroquinos não quiseram abrir mão deles, desviando a rota e a localização do entreposto.
Portugal viu-se forçado a ir às fontes. Chegado à Índia e outras partes do Oriente, Portugal enriqueceu – o chamado ciclo da pimenta. O dinheiro gastou-se mal gasto e o país empobreceu. Veio, mais tarde, o ciclo do ouro do Brasil. O dinheiro gastou-se mal gasto e o país empobreceu. Viveu depois com riqueza gerada nas colónias africanas, até 1975. No entanto, tal como no passado, a riqueza não chegava ao povo e África não foi, nem o Brasil, nem a Índia.
Uma outra ilustração da pobreza do país é a riqueza das suas principais casas nobres. A casa de Bragança, até chegar ao trono, a mais rica de Portugal. Porém, estaria a meio das dez principais da Península Ibérica – a posição é de memória, visto não ter conseguido encontrar a documentação de suporte. Quando se compara com França, esta casa ducal tem a riqueza semelhante a dum marquês, ou até dum conde. Indo para a Alemanha… upa! Upa!
O estatuto de fidalgo era em Portugal, como em Espanha, transversal a toda a nobreza. Porém, visto ser um estatuto herdado de pai e independentemente da sua riqueza, ou acesso à Corte, a divisão e/ou má gestão de património criou situações ridículas. O estatuto de fidalgo era hereditário e não carecia de confirmação régia – multiplicaram-se. Um viajante francês do século XVII escreveu que a generalidade da nobreza em Portugal vivia em casas idênticas à de famílias medianamente ricas.
O Entre Douro e Minho é farto em casos curiosos. Em Ponte de Lima, vi uma casinha – literalmente – com a sua pedra de armas. Um vitivinicultor dessa região (Vinhos Verdes) contou-me da sua dificuldade em comprar, ou mesmo arrendar terra. Vender um bocado do planeta é problemático e os mais velhos recusavam-se a ter como rendeiro um fidalgo – as coisas deviam ter o sentido inverso, deveria ser o nobre a ter rendeiros. Contou-me que por ali existem fidalgotes, zelosos da sua posição, usando o seu ouro e vestindo negro (coisa solene desde a Idade Média), e mais pobres que os seus rendeiros. Fidalgo não trabalha, ainda pensam muitos.
Voltando ao copo e ao prato
A vinha foi cultivada, por séculos, em terrenos nobres, para que desse muito. A escolha das castas fez-se pela quantidade gerada. Hoje, tudo isto tende a mudar. No Ribatejo, as vinhas passaram para solos mais pobres e menos irrigados. É que a videira gosta de sofrer, pouco alimento e pouca água.
Quanto menos cachos produzir, maior é o esforço da planta em mimar os que têm. Por isso, em vinhas novas, cheias de fulgor, podam-se os cachos, para que as videiras se esforcem na sobrevivência dos filhos que faltam. Baixa a quantidade e sobe a qualidade.
O atavismo criado pela pobreza prolongou-se até ao final do século XX e talvez ao início do novo milénio. Contou-me um vitivinicultor que, quando tomou conta da propriedade, onde plantou novas vinhas, teve dificuldades em arranjar gente para cortar cachos e os mandar para a terra. Para as mondadeiras era (é) pecado desperdiçar comida, pelo que se foram queixar ao padre.
Porém, o facto da precisão de vinho para alimentar as gentes não quer dizer que os portugueses não gostassem de bom vinho e não o soubessem produzir. É aqui que entra o engenho português.
Somos reconhecidos pelo desenrascanço. A palavra, o verbo, desenrascar não tem tradução – faz parte duma restrita família, espalhada por muitos idiomas. Ao contrário dessa característica, a solução dos portugueses não foi a de atamancar, criar uma coisa provisória, resolver em cima do momento crítico. Não! Foi pensado e bem pensado. Funcionou tão bem que ainda hoje colhemos frutos.
É como investir as poupanças. Se colocarmos todo o aforro em acções dum banco – o BES, por exemplo – podemos ganhar muito, se a prestação da empresa correr bem, mas, se der para o torto, perde-se dinheiro. Diz o povo que não se devem meter os ovos todos no mesmo cesto.Com este raciocínio, o português juntou, numa mesma vinha, uma grande variedade de castas. Quando o ano era adverso para duas ou três, era benéfico para outras tantas. Correr mesmo mal não estava fora das possibilidades, mas a hipótese de bom vinho aumentava com o jogo em equipa. Os encepamentos podem chegar às dezenas de castas – há quem fale em centenas –, garantiam alimento e maior possibilidade de se conseguir um bom vinho, ou, pelo menos, uma qualidade regular.
Hoje, a demanda por vinhas velhas é como a busca do Graal. Há vinhas velhas boas e outras que são trastes. Enólogos e empresas buscam-nas, comprando as uvas, ou mesmo a vinha. O prazer sofisticado, exigente, ou carente de variedade de experiências – pontos cumulativos – deu origem aos chamados vinhos de vinha, ou vinho de lote na vinha.
As vinhas velhas têm uma vantagem: a poda já foi feita naturalmente. Obviamente não é uma poda. Conforme vão envelhecendo, as videiras perdem produtividade. Com menos cachos, melhor a capacidade de criarem boas uvas.
A prática da junção de várias castas traduziu-se numa outra vantagem: biodiversidade. Por essa via, chegaram aos presentes cultivares que poderiam ter desaparecido. Académicos e produtores de vinhos de grande qualidade e diferenciação jogam as mãos à cabeça cada vez que ouvem falar no arranque duma vinha velha. Acresce que este modo de cultivo permitiu uma maior diferenciação genética relativamente a uma mesma casta.A vinha podia não prestar, já quase não produzir, mas se não fora inventariada e reconhecida fica a dor do desconhecimento: será que naquela salganhada não estaria uma raridade, algo único?
Por causa da junção de castas numa só vinha é que Portugal tem o maior património vitícola da Europa – na verdade é o segundo, pois o primeiro é Itália. No entanto, vendo proporcionalmente, o nosso país ganha de longe.Nos manuais estão contabilizadas 341 castas, nem todas portuguesas. Estudo visual de folhas e uvas, análises ao ADN e cálculos matemáticos (apuramento de variação genética)detectaram cerca de 250. Nas vinhas velhas, poderão estar mais, mas dificilmente se atingirão inicialmente contadas.
Contudo, há coisas que os contemporâneos – e antepassados muito próximos – erram desnecessariamente. O palheto – ou palhete – é resultado da junção de vinhos tintos e brancos.Nessas vinhas velhas, algumas centenárias, é muito comum encontrarem-se uvas brancas juntas a tintas. Noutros locais, onde tintas e brancas se separavam nas vinhas, a união era prática corrente. Muito embora se possam temperar tintos com algum branco, o palheto é considerado vinho de mesa – a categoria inferior à luz da lei. A excepção é a Encosta d’Aire. O vinho de Colares, tão gabado por Eça de Queiroz, era palheto. O vinho de Tormes, casa do mesmo escritor, era palheto, contou-me a viúva do neto do romancista – no seu casamento ainda se bebeu palheto.
Ah! Como cada país tem a sua casta, lembraram-se os portugueses de “inventar” uma. Em vez de explicarem a nossa diferença, como mais-valia, levamos o estandarte da touriga nacional. Parece-me asneira.
Aprender com o passado
Aprender até morrer e não ter medo de ouvir os velhos e pensar no que fizeram os antepassados. Os vinhos portugueses continuam a ser feitos com diferentes uvas, embora sejam comuns os monocasta.Porém, hoje cada casta tem o seu talhão. Há o cuidado de escolher variedades que se comportem bem com o clima, solo, etc. Tendencialmente, as vinhas plantam-se em esquadria romana.
Conforme as maturações fenólicas e a de açúcar – que corresponderá pelo álcool – assim se determina o momento da vindima. Ao enólogo compete ter ideias e conhecimento para atingir o objectivo proposto. Recorrendo a depósitos de inox, cimento, madeira de diversas qualidades e proveniências e tamanho, determinação da duração dos estágios nesses recipientes primários, mudança de receptáculo, determinação do tempo em garrafa…
Tendo à partida uma ideia e dedicando ao vinho de cada casta e/ou localização, irá em laboratório compor o lote. Aí entram os vários vinhos, em quantidade e em proporções que reflictam o pretendido.