Odeio a perfeição

“Mentem-nos. Desde que choramos pela primeira vez até fecharmos os olhos pela última. Com sorte, não morremos na mentira; com sorte, nalguma altura das nossas vidas conseguimos abrir os olhos. Conseguimos ver para além da perfeição utópica com que nos bombardeiam e que nos exigem. Detergentes perfeitos, roupas perfeitas, pessoas perfeitas. E férias de sonho, rios de dinheiro. Comprar, porque só a comprar é que chegamos a ser deuses da perfeição. Tudo nos ensina realidades distorcidas e consumismo exagerado. Filmes, anúncios, livros. Final feliz perfeito quando, lá fora, a sociedade se afoga em pobreza e solidão, e nós, cegos, continuamos encadeados pela televisão.

“Desde pequeninos que somos pre-programados e educados com a noção de que podemos ter tudo, ser tudo, chegar a qualquer lado. Que tudo acaba bem. Que é possível que todos gostem de nós – ou melhor, o ditado ensina-nos que não é possível, mas sentimos o peso de, pelo menos, tentar que todos gostem de nós. Não conseguimos evitar sentir-nos tristes se descobrimos que não é possível, mas ninguém nos avisou que não fazia mal. Ensinam-nos que devemos ser cínicos, hipócritas, neutros. Que devemos comprar para ter mais amigos, para sermos melhores. Ou então chega a moda de sermos nós próprios, pode começar nas redes sociais, ou nos filmes de Hollywood, e espalha-se como um vírus numa sociedade faminta de mentiras. Numa altura em que já ninguém sabe quem é nem como é, nem o que deve fazer. Quer dizer, eu acredito que, no fundo, somos sempre nós, ou há sempre um bocadinho de nós, um bocadinho natural e inato, mas também há uma grande parte de algo que aprendemos a ser, a fazer, a calar ou a dizer. Porque, acima de tudo, devemos ser boas mulheres, bons maridos, bons trabalhadores, bons filhos, bons amigos, bons pais, com o trabalho perfeito, a casa perfeita, a vida perfeita. Comer comida perfeita e saudável, ter um corpo perfeito e saudável, ter horas no dia suficientes para dormir, passear o cão, cuidar dos filhos, cozinhar e comer saudável, trabalhar, fazer as tarefas de casa. E claro, ser perfeitos. Irrealisticamente perfeitos.

“Ninguém nos diz que podemos errar; crescemos com a noção de que só podemos errar uma vez na vida, de que nos olharão de lado a cada deslize. A cada lágrima, a cada erro no trabalho, se os nossos filhos caem, se não tiramos boas notas, se cuspimos enquanto falamos, se não temos o último telemóvel nem conduzimos um carro novo. Ninguém nos diz que não faz mal não ser perfeito, que não faz mal fazermos escolhas que nos façam felizes, que animem a nossa alma. Porque esta mentira em que vivemos só nos desgasta, só nos traz infelicidade. Ninguém nos diz que ser perfeitos é sermos nós mesmos com tudo o que isso implica – sem esperar pela moda, com medos e vulnerabilidades e imperfeições. E admiti-los, e continuar em frente. Dizer coisas erradas nas horas certas, fazer as coisas certas nas horas erradas, e errar sem querer. Diferentes. Sem telemóvel e com um carro de 93. Não, não podemos ser diferente, só podemos ser diferentes se formos os melhores. Em quê? Em tudo, ou em qualquer coisa, não importa; só temos é de ser os melhores! Sentimos uma infelicidade imensa, negra na alma, camuflada de pressão e stress – mas ensinam-nos que o stress faz mal à saúde, por isso não te podes importar tanto, só o suficiente para seres perfeito. Toma comprimidos, drogas, álcool, se for preciso. Mas que não tem apanhem fora dessa máscara. Não se entende. O mundo não se entende. Odeio a perfeição.”

Cansou-se de falar. Calou-se. O psiquiatra olhou bem para ela, com os olhos semi-cerrados e os pensamentos concentrados no seu discurso. Escrevinhou alguma coisa no seu bloco, coçou a barba, voltou a escrever. Arrancou uma receita e estendeu-lha. Olhou para ela. Ela olhou para a receita e sorriu, derrotada: tinha-lhe aumentado a medicação.

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