Ode à Minha Avó

O corpo arrasta-se na languidez dos dias cinzentos e convida, amiúde, as emoções a compadecerem-se dele num lúcido rasgo de egoísmo. Cai o cérebro, cai o coração. Soltam-se as cordas num trinado gutural de dor dedilhada à chuva.

Caem também as pálpebras apertadas, tateando a orla em busca de um momento de paz e lá se chega, atracando de mansinho enquanto o coração abranda o passo para apreciar a viagem. De repente, a colcha de renda alva e grosseira sob o corpo entregue à doce inaptidão da preguiça. O sol a fazer-se convidado, a penetrar o vidro e a lamber a pele descoberta. A campaínha que toca urgente, pressionada pelo dedo idoso e curvado da tia Amélia. A conversa tão amena, tão ingénua, aludindo às plantas floridas que repousam sobre o tanque entaipado:

– Dá-me um pézinho daquela, Dona Felismina? É capaz de pegar, num vasinho na minha varanda.

A andorinha de loiça atenta, lá em cima da aduela da porta, onde partilha o ninho com o número 4. Uma primavera inteira no 4º andar porta 4, do lote 181. Toda a minha primavera ali – com o corpo descoberto, a pele lambida pelo sol e as vozes amigas – num delicioso dormitar desapressado. Chegada ao destino passeia-me a alma pela casa com o chão em tacos de madeira e, juro, a minha alma tem olfato. Os tacos foram encerados há um instantinho… terão já secado?

– Desculpa avó, não queria chatear-te. Saio já, deixa-me dar só mais uma voltinha.

Naperons, lava-loiça em pedra, um tapete com pretensões persas. Todo o tipo de loiças de engalanar móveis antigos impecavelmente limpos e cuidados. A cristaleira com o recheio multicolorido, tão feio e organizado.

Creio que há uma cafeteira de cevada acabada de fazer em cima do bico do fogão, à espera que a borra assente e possa, finalmente, entornar-se sobre uma taça cheia de broa de milho migada e açúcar.

– Vó, as sopas de café estão prontas?

Dou mais uma volta para entreter a fome. A arca preta na entrada, a mesa redonda, as barras de renda a embelezar as prateleiras da cozinha. O irmão pobre do relógio de cuco, com detalhes dourados, a ecoar-me na alma.

– Tac, tac, tac, tac.

E eu:

– Já está, vó?

Só mais um minuto. Há um buda risonho que acolhe cinco crianças sorridentes no colo. Flores de lotus artesanais pintadas nas vestes. Loiça barata de gente feliz. Elas trepam-lhe pelo corpo composto de amor, são cinco e sobra ainda colo para outras cinco que não vejo. Também não te vejo o colo vó, mas o buda barato veio carregado de humildade e amor, introduzir ruído na minha decoração harmoniosa sem cristaleiras confusas e naperons de renda. Porque toda a casa precisa de colo, eu regressei e tu já não estás.

Então, vó:

– As sopas de café já estão prontas?

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