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O último olhar

O Zéquinha já não mora entre nós. Deixou de ser físico e é apenas uma poeira cósmica que espalha magia para quem a quiser aceitar. Ficou a dormir e agora a eternidade deixou de ser um peso e passou a companheira. As dores foram-se e os raios de sol aquecem sempre como quando estava no seu banco à varanda. Este foi ocupado pelo Miguel que recebeu a herança directa e que a usufrui.

Chegou num dia cinzento. Era o 25 de Abril de 2002. Ouvi um miar e intrigou-me. Tive de descobrir a origem. Provinha duma sarjeta. Um minúsculo gato, preto e branco estava aprisionado. Que ironia macabra. Logo num dia como aquele, com tanto simbolismo. Tinha de o libertar e oferecer-lhe a merecida liberdade.

Veio para os meus braços e tornou-se o gato mais mimado que se possa imaginar. Quando saía de casa, ele abraçava-se a um peluche enorme e dormia o resto do dia. Quando regressava, lá estava ele, no meio dos cães, a receber-me como se fosse um deles. Uma bolinha tão engraçada que me fez quebrar regras e permitir que dormisse na minha cama.

O convívio com o cão e a cadela deram frutos e quase que ladrava. Tenho a certeza que conseguia rosnar ainda que baixinho. Davam-se todos bem e quando chegou o outro gato a festa continuava. O seu melhor amigo era o Tomé, o coelho branco gigante que partilhava o feno com ele. Eram mesmo compinchas e essa amizade só terminou quando o Tomé passou para o lado do arco-íris.

Aguentou-se firme quando morreram os seus primeiros amigos e aceitou todos os outros que chegaram. Ele era o rei e tinha o lugar de destaque na bancada. Mais nenhum conseguiu ocupar esse posto. Cantava uma espécie de ópera, à janela, para mostrar o seu desagrado com os pombos. O parapeito era dele e mais nada. Eles que procurassem outro poiso.

Gostava de pastéis de feijão e sempre que conseguia roubava um que nunca conseguia comer, porque escondia-o de tal maneira que os outros descobriam e ficava sem o produto do furto. Depois uma tristeza, de cabeça para baixo, tomava conta dele até se esquecer. Era rápido e voltava à brincadeira com a maior das facilidades. Uma casa com cinco gatos é sempre uma animação.

A cama deles ficou mais larga e há um espaço que não volta a ser preenchido. O vazio tomou conta daquele cantinho onde ele se aninhava e dormia as horas de repouso de beleza que todos os gatos devem ter. Os outros esperam o seu regresso como se um milagre pudesse acontecer. O cão chora, pois sabe que não volta e por isso sente-lhe a falta.

Ainda olho para baixo na esperança de o ver atravessar a sala, já cambaleante e trôpego, mas pronto para ir comer. Por fim, já só conseguia comer patês que lhe davam ânimo para continuar a cantar. Até quarta-feira. Deliciou-se com uma caixa inteira que o deve ter saciado. Depois disso, nada mais lhe deu consolo a não ser o sol.

Estava perdido dentro de si. A casa transformou-se num local estranho e perigoso e a orientação evaporou-se. Estava incontinente e senil. Aceitava as festas como se durante anos não tivesse vergonha de ser apanhado nestas coisas de meiguices que lhe podiam tirar o título de chefe. Sabia que o fim estava próximo e nada mais lhe importava.

A decisão teve de ser tomada e, mesmo sendo dura, era uma prova de amor. O meu menino de ouro, o meu primeiro gato tinha chegado ao fim do seu enorme e glorioso reinado. Um gato que sempre teve atitudes de cão e um comportamento de menino que sabe o que quer.

Deve estar a brincar com os outros que conheceu e que lhe deram cor à vida. Imagino-o numa nuvem fofinha a rebolar e a cantar as suas melodias de eleição. O céu dos animais deve ser muito divertido e animado. Sem horários e necessidades, tudo deve acontecer com a maior das naturalidades.

Deixei-o a dormir. Antes, olhou para mim como se agradecesse a decisão difícil e angustiante que tive de remoer. Pode parecer uma estupidez, mas senti-o tranquilo e tão calmo que as lágrimas se soltaram sem autorização. Repousa para sempre da vida terrena que a outra, a mística, é perfeita para ele.

Partiu em Maio florido, num dia repleto de sol e de calor. O tal que ele tanto gostava e que o aquecia tão bem. Fica comigo o último olhar de gratidão, de cumplicidade e de imenso amor. A saudade, essa atrevida bastarda, chegou logo de seguida e avisou que vai ficar.

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