O trabalho não pago

Sou formadora certificada em igualdade de género e — acho eu que é por este motivo que — as minhas amigas sentem-se à vontade para me enviarem memes e gif’s e jpeg’s humorísticos sobre o tema.

Maior parte destas imagens sarcásticas estão relacionadas com o trabalho doméstico ou de cuidado não pago.

A Fundação Francisco Manuel dos Santos divulgou, em 2019, um estudo intitulado ‘As mulheres em Portugal, hoje: quem são, o que pensam e como sentem’, onde mostra resultados alarmantes.

Começamos por:

– 56% do tempo que as mulheres passam acordadas em casa é dedicado a trabalho não pago (casa e filhos), o que se traduz em 3h48m por dia, nos dias úteis. Esta proporção mantém-se quase igual estando a mulher ativa no mercado de trabalho (57%, em média) ou não tendo trabalho pago (52%, em média).

O estudo, na área das ciências sociais, fala em média. Compreendendo o conceito de média, sabemos que há mulheres cujo trabalho doméstico ocupa mais do que a média, e outras menos — daí termos chegado à média.

Creio que a esta hora, já todas estamos a fazer contas ao nosso dia. Quantas horas fico fora de casa (no trabalho, na estrada, no mercado) e quantas horas fico em casa? Dessas, tenho de subtrair as que não são de trabalhos de cuidado: quantas horas durmo, quantas horas (ou minutos) dedico a higiene pessoal?

Tenho uma amiga, mãe de dois, que me disse em plena pandemia e confinamento: ‘eu agora tenho tempo para pôr um creme depois do banho. Não fazia isto há anos’. A felicidade de um simples creme hidratante. São dois minutos. Nem isso, ela é pequenina.

Homens que estão a ler este texto: não vos estou a culpar de nada. Até queria confessar aqui o meu pecado (que todas as pessoas sabem que um bom site de artigos de opinião é melhor confessionário do que aquele todo iluminado do Big Brother).

Confesso: dou por mim, mais vezes do que as que queria, a pensar ‘por que raio nós, mulheres, não mudamos isto? Por que razão nos deixamos chegar a este ponto de cansaço e modo de sobrevivência?

Afasto este pensamento. Então agora vou culpar as mulheres? Vou andar aqui a dizer que se fazemos isto, estamos a validar o comportamento umas das outras? Não. Vade-retro, Satanás.

Num recente trabalho, conheci uma mulher, mãe de três, que trabalha todos os dias. A sua folga semanal é passada a tratar de assuntos burocráticos, no contabilista ou a preparar todo para as crianças. Disse-me ‘não posso ir de férias, estaria a gastar o dinheiro no hotel e a gastar aquele que não recebi por estar com as casas fechadas!’. De imediato, sugeri a estratégia da delegação de funções. Não, nem pensar. É uma mulher que faz tudo, sabe fazer tudo e faz tudo bem.

Vim para casa a achar-me uma fraca. Eu não trabalho assim tantas horas. Nem tenho assim tantos/as filhos/as. Eu até deixo roupa para passar a ferro na lavandaria! Eu, que me despedi quando estava efetiva. O QUE É QUE EU ESTOU A FAZER?!

Eu estou a sair do buraco profundo que um dia me meti. A querer fazer tudo, a querer ser a melhor, a primeira. Não culpo a sociedade por não ter dormido nos primeiros 15 dias da minha filha. Também já deixei de culpar-me e sei que para a próxima, que é já este ano, saberei fazer melhor.

Eu não tenho as minhas horas muito bem contabilizadas. Neste momento, estou a escrever no meu escritório em casa com uma máquina de roupa a lavar. Tenho uma to do list escrita à mão e à hora de almoço vou acompanhar a minha mãe a uma consulta. A minha organização não é um exemplo, mas agora sei que posso dizer ‘não, não consigo. Alguém me ajuda?

Eu sei, eu sei. Estou a cair no erro da generalização. Não posso fazer de meia dúzia de histórias um estudo em sociologia.

O que posso fazer, então?

site caravanices

Não sei. Não tenho a solução. As creches estão cheias e passamos meses a avaliar escolas. Os serviços de apoio são escassos ou caros. Não queremos dizer ao chefe que temos de faltar para apoiar a família, mesmo que essas faltas sejam justificáveis com enquadramento legal. Não conseguimos ir para a cama com a cozinha por arrumar e o cesto de roupa para passar tornou-se o nosso pior pesadelo – acho sempre que vai sair de lá o Chucky. Ainda por cima, alguém nos disse que a mulher do António do talho passa as meias a ferro.

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Antigo Acordo Ortográfico

 

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