O Silêncio de Bernardo Sassetti

“Eu perdi um amigo, mas todos perdemos um músico portentoso, com um talento imenso que transbordava a todos os momentos, em todos os géneros. O Bernardo era um ser humano incrível e, como músico e compositor, não tinha pontos fracos. Tudo nele era de uma grande riqueza: a melodia, a harmonia, o ritmo, a espontaneidade, a inspiração no acto de compor e de improvisar. O defeito dele era ter tantos talentos. Estar em palco com o Bernardo era incrível. A única certeza que tínhamos ao entrar era a de que não havia certeza nenhuma. Nada era igual, quando ele se sentava ao piano. Fizemos três discos e eu não consigo escolher um. Era um amigo especial, um músico especial.” Palavras sentidas que Mário Laginha disse a 11 de Maio de 2012, aquando da morte de Bernardo Sassetti, vítima de uma queda, enquanto fotografava numa falésia, no Guincho.

Nos dias que se seguiram, foram realizadas duas cerimónias fúnebres, uma privada e outra pública, na Basílica da Estrela, onde houve também um concerto de homenagem ao músico e compositor de 41 anos. Foi pedido aos presentes que guardassem os aplausos para o final da cerimónia e, por isso, no intervalo das peças musicais, houve silêncio. Só no fim da homenagem a este grande músico, os presentes se ergueram comovidos e aplaudiram longamente, durante mais de cinco minutos. Acto que se repetiu, quando a urna foi, novamente, levantada em ombros e transportada para fora da Basílica, para onde as palmas continuaram a ser ouvidas.

Bernardo Sassetti nasceu a 24 de Junho de 1970, filho mais novo de Sidónio de Freitas Branco Pais e de Maria de Lourdes da Costa de Sousa de Macedo Sassetti. Iniciou os estudos em piano clássico aos nove anos, tendo frequentado a Academia dos Amadores de Música. Um percurso inaugural levado pouco a sério. “A minha tendência era improvisar sobre as partituras, um verdadeiro tormento para os professores. Sempre procurei uma certa naturalidade na música que não encontrei no ensino académico”, recordou numa entrevista concedida ao Jornal de Letras (JL), em 2005.

Em 1987, iniciou-se profissionalmente no Jazz, estudando com músicos como Zé Eduardo, Horace Parlan e Sir Holand Hanna e tocando com o quarteto de Carlos Martins e o Moreiras Jazztet. O seu primeiro disco, em nome próprio, Sassetti, foi gravado em 1994, com a participação de Paquito D’Rivera, seguido de Mundos, em 1996, de onde se destacam os ritmos afro-latinos. “Vivo, sobretudo, de concertos. Eu nunca ganhei um tusto com um disco que fiz. Ganhei com o Mundo, o primeiro disco em que tive royalties (…), qualquer coisa que poderia hoje equivaler a 400, 500 euros”, contou em entrevista ao suplemento Outlook, do Diário Económico.

Em 2010, Sassetti  editou Motion, que o voltava a juntar ao trio – Carlos Barretto, no contrabaixo, e Alexandre Frazão, na bateria –, a formação que mais longe o levara em termos criativos, num caminho que se tornara progressivamente mais livre, recusando as habituais estruturas do Jazz, mas nunca perdendo de vista o lirismo aprendido com Bill Evans. Criou um entra-e-sai de melodias, de partes que regressavam circularmente e que viviam sem rumo, mas sem nunca se perder. O amor furioso que Sassetti tinha pela música correu sempre em paralelo com outras duas paixões: a fotografia e o cinema. Motion foi construído tendo como base esta ideia de encadeamento, de que cada música é parte de um movimento e de uma dinâmica total. “Seria muito infeliz se me dedicasse só á música”, admitiu numa entrevista a Laurinda Alves.

O músico que mantinha “muitas dúvidas sobre o título de compositor”, apesar da sua fértil produção, destacou-se com o álbum Nocturno, em 2002, pelo qual foi distinguido com o Primeiro Prémio Carlos Paredes. Em 2004, fez uma incursão até Grândolas, gravado em conjunto com Mário Laginha, para a comemoração dos 30 anos do 25 de Abril. Em 2011, assinou o seu último trabalho musical gravado, com Carlos do Carmo, no qual fez uma visita aos poemas de José Afonso que mais marcaram o fadista. Nesta parceria, Sassetti encontrou um inesperado companheiro de improvisação, uma alma gémea no jogo de tempos e respostas, que foram construindo à medida que se observavam e ouviam. “Gosto de pensar que a minha música é, por vezes, verdadeira. Mas, às vezes, é fingimento e é uma enorme fonte de fragilidade interior que não pode ser disfarçada”, confessou ao JL.

“Começou a ganhar paixão pelo silêncio e pelo ressoar do piano. Apesar de ser um pianista dotado do ponto de vista técnico, foi depurando a música”, recorda o Director da Antena 2, João Almeida. Esta inquietude era o pleno nas suas várias artes, recusando-se a seguir fielmente a partitura para tocar quase sempre a obsessão. Marcava presença na música, nas letras, no cinema, no teatro e na fotografia, o impulso com que se terá despedido. Como descreveu, em 2007, ao Jazz.pt, “não é uma paixão, é uma necessidade de olhar para o mundo, através daquele visor rectangular ou, não tendo a câmara comigo, imaginar simplesmente as imagens, as sombras e a luz que poderiam resultar de um determinado momento. E, às vezes, acontecem pequenos inesperados milagres! As imagens da música e a música das imagens complementam a criação artística que persigo.”

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