O que sou já não cabe em mim. Já não preenche por completo os limites da minha pele. Os meus olhos percorrem com a estranheza da primeira vez os lugares que conheço de ginjeira. O coração bate mais desritmado com cada pergunta que se aloja no meu corpo. Há respostas no ar que borboleteiam invisivelmente à minha volta e não consigo apanhar, alcançar, acompanhar – por vezes nem sequer ver, mesmo colocando a mão por cima dos olhos para a verdade não me ofuscar.
O que sou aperta-me tanto que tenho medo de me rasgar pelas costuras dos joelhos e dos cotovelos. O que sou aperta-me tanto que me falta tamanho e energia para me enfiar comodamente nos braços e nas pernas que sempre foram minhas, encaixando-me que nem roupa. Ando lasso pela vida. Pernas bambaleantes, dedos nervosos, algo indefinível que rola devagar pela minha mente, um berlinde num chão de madeira que atravessa o mundo inteiro sem chegar a lado nenhum. Sei lá eu para onde vai, que farpas e sulcos irá encontrar.
Mas os outros não vêem. Por fora, sorrio serenamente. Mas dentro. Mas dentro. Os outros passam a vista por mim num rolar de olhos automático e ignoram-me com a mesma simplicidade destinada a quem não faz por ser lembrado. Como se eu fosse o mesmo de sempre. Como se não estivesse tão irrequietamente em mim, tão desconfortavelmente em mim. Dentro não tenho rosto.
Que estranheza no corpo é esta?
Serão dores do crescimento? Como nos doem os ossos na infância, é possível que nos doa o íntimo, o indizível, a essência quando queremos dar um novo pulo?
A perna mexe-se automaticamente, único sinal de grito interior. Desvio a atenção para o meu pulso à espera de qualquer coisa que não desvendei ainda. Que bizarro, levar o tempo agarrado ao corpo, numa contagem decrescente incógnita. O vazio continua a esburacar o que desconhecemos, a colonizar a mente até sentirmos que o afectado é o coração, até nos esquecermos de que não somos mais que um cérebro preso a ossadas (mas fingimos ser, fingimos tão bem ser). O relógio faz muito barulho. Os ponteiros minúsculos impõem-se entre os outros sons. À noite, no quarto, quase gritam, parece que batem no vidro angustiados, a clamar emancipação. E eu tento decifrar-lhes o mistério e as súplicas.
Nada.
Espero mais um pouco pela revelação.
Nada.
Por vezes acredito com toda a força que só nos resta a desilusão, o encolher de ombros desistente, a dormência. Pelo menos, descansaria o espírito desta correria metafísica, seria quase um alívio. Depois o coração descompassa de novo por motivos encobertos e fico preso, debaixo da almofada, naquele sentir desconhecido que nunca mais conseguirei arrancar de mim.