Depois de ter estreado finalmente o The Sandman e ter visto a sua grande repercussão, ao ver a série, pareceu-me uma adaptação “by the book”, feita com excesso de respeito pelo material original, o que privou a série de ser um produto mais virado para as características do novo meio para onde estava a ser adaptada e continuou a ser demasiado fiel ao que foi feito em BD, há mais de trinta anos pelo autor Neil Gaiman.
Contudo, esta série está a criar algo novo na tv – a adaptação fiel de uma série longa de comic books e é diferente, porque séries como The Boys, Preacher ou Sweet Tooth afastam-se bastante do objecto original, o que não acontece aqui.
Então, resta a questão, o que separa as boas adaptações de BD, das competentes e das geniais? O que é que eu gostava que The Sandman absorvesse do cinema?
A resposta é um tanto complexa e não posso mais do que através de algumas análises tentar tecer alguns argumentos, tendo por base filmes dos quais sou fã, mas um fã consciente das virtudes e fraquezas daquilo de que gosta.
Adaptações hiper-fiéis
Há uns anos, surgiram duas adaptações de BD do grande Frank Miller que entram nesta categoria: Sin City e 300. Aqui não existe um trabalho de adaptação, mas sim um trabalho de transição literal de um meio para o outro, se bem que em 300, o argumento expande um pouco mais a narrativa da BD original.
Não posso dizer que ao ver os filmes, o meu lado de fã do Miller não tenha ficado contente com o retrato cinematográfico do Marv ou do grande Hartigan.
A questão não eram as escolhas excepcionais dos actores, mas a colagem incrível aos livros e sobretudo, a utilização da voz off. De forma resumida, a voz off, escrita de forma genial pelo Frank Miller não tinha grande papel no filme. É um recurso que na banda-desenhada é essencial para nos levar para Sin City, para o seu ambiente hard-boiled, mas o cinema traz outras dimensões para nos brindar com o ambiente hard-boiled – o som, a banda sonora e a imagem em movimento. Não acho que devesse ser totalmente retirada, mas deveria ter sido polida.
E depois existe o 300. Aqui os argumentistas retiraram a maior parte da voz off e criaram uma personagem que narra alguns aspectos da história. Parece-me uma escolha acertada e que liberta o filme de um peso excesso de uma narração. Mas aqui, a adaptação literal, em termos de planos, ambiente vem do facto de Zack Snyder ser uma realizador com muito menos recursos que o Robert Rodriguez.
Pessoalmente, gosto muito mais dos dois filmes do Sin City do que do 300, talvez porque o Robert Rodriguez preenche os espaço entre vinhetas com cinema em estado puro, cheio de criatividade. No caso do 300, todas as escolhas do realizador transformam um narrativa já muito de direita, num objectivo que vai para uma iconografia de extrema-direita, com um destaque exagerado com corpos esculturais, contra picados a tornar os homens maiores que a vida – tudo isto está na obra do Miller, mas foi elevado ainda mais, ao ponto de se tornar um absurdo.
Adaptações Autorais de Super-heróis
Batman
Ao longo dos anos, muitas adaptações foram feitas para o cinema, por autores que não tinham total afinidade com o material a adaptar e por isso mesmo, procuravam encaixar o filme na sua marca autoral.
Uma personagem que foi bastante visada por este aspecto, foi o Batman, primeiro com o Tim Burton e posteriormente com o Christopher Nolan. Se gosto muito da adaptação do Tim Burton, porque para mim um bom Batman no cinema tem de ter um aspecto plástico cuidado, as adaptações do Christopher Nolan são excelentes filmes, mas não são excelentes filmes do Batman.
A diferença é que se eu procurar o espírito dos comics do Batman, vou encontrá-lo nos filmes do Burton (principalmente no primeiro), mas será mais complicado de o encontrar nos do Nolan, por causa do excesso de “realismo” que o autor procurou. No meio de tanta coisa realista, acho interessante que o que as pessoas mais gostam no Batman do Nolan, é o que se afasta mais do realismo e vai para um lado mais comic book – a representação incrível do Joker, que mata como um vilão de um comic e não como um vilão “realista” como a proposta está sempre a querer vender. Sendo um fã absoluta desta versão do Joker, nunca deixei de achar que o Ledger estava muito melhor no papel do que a réplica dada pelo Bale aos gritos.
Curiosamente, foi com grande surpresa que o realizador Matt Reeves, sem utilizar uma marca autoral tão vincada como os dois realizadores supracitados, criou uma excepcional adaptação do Batman.
Aqui o realizador moldou o filme por aspectos de cinefilia, construindo o seu filme com um análise de muitos filmes que poderiam servir de inspiração ao Universo do Morcego.
Parece-me que ao contrário de Nolan e Burton que usaram o Batman para exprimir as suas abordagens cinematográficas, o realizador Matt Reeves usou o Batman para homenagear o cinema que pensou ser uma boa base para o Homem Morcego. Dessa forma, os filmes de gangsters dos anos 70, a série do Batman dos anos 60 ou mesmo a série de animação dos anos 90, foram pilares essencial para esta construção.
E isso não é propriamente uma novidade, uma vez que já em Joker, o realizador Todd Phillips tinha feito a longa metragem com uma “apropriação” a conceitos cinematográficos do realizador Martim Scorsese.
No entanto, parece-me que no filme Joker existe um decalque, enquanto que em Batman existe uma inspiração para uma narrativa original.
Superman de 78 – o modelo
Mas o cunho autoral moderno começa com o Superman de Richard Donner, no qual ele estabelece as bases para o filme de origem de super-heróis – o actor pouco conhecido na personagem principal, a estrela como vilão, os efeitos especiais e o grande cuidado com a construção do Universo da personagem de forma verossímil.
Continua a ser um grande filme, que nos cativa com a excelente interpretação do protagonista, o eterno Christopher Reeve.
Este filme acaba por inaugurar no género, as grandes bandas sonoras que identificam de forma imediata os personagens. Essa marca seria muito importante para o género no Batman de 1989, com o excelente trabalho de Danny Elfman e posteriormente nos anos 90 na série dos X-Men. Infelizmente, actualmente não conseguimos ter uma identificação imediata com as orquestrações feitas para estas adaptações, talvez porque são muitas e feitas num espaço de poucos anos.
Spiderman – as adaptações modernas de super-heróis
Com Spiderman, Sam Raimi cria a adaptação muito influenciada pelo trabalho de Donner, em que o realizador abraça do género e não tem problema em transportar para o grande ecrã todos os aspectos que muitos julgavam ser foleiros nos comics. Dessa forma, com um prodigioso trabalho de realização, Sam Raimi cria uma boa história de origem que será “esmagada” pela sequela muito superior e talvez o melhor filme de super-heróis feitos até à data – o Spiderman 2.
E a sequela é muito boa porque o realizador está mais à vontade e não tem medo de experimentar. Ao experimentar, o público vê no filme coisas que não estaria à espera de ver num filme do género e isso é o que faz o filme perdurar – claro que falo daquela violência no limite, o vilão Octopus ser verdadeiramente uma ameaça e ser muito bem construído no guião e em carne e osso pelo excelente Alfred Molina.
Mas os filmes de Raimi, constroem bem a personagem principal. A personagem tem nuance, tem arcos bem definidos nos seus dois primeiros filmes – o terceiro já não conta para aqui.
Os desafios da personagem são a uma escala que ainda nos faz importar. Não temos de lidar com o fim do mundo, mas sim, com o dinheiro para pagar a renda ao fim do mês.
Adaptações de Romances Gráficos
Cá está uma coisa de que raramente se fala. Da mesma forma que romances são adaptados para o cinema, também muitos romances gráficos já foram adaptados. No entanto, o que é curioso é que estes normalmente acabam por passar um pouco debaixo do radar e muitas vezes, não são tão valorizados em termos de popularidade como as adaptações de personagens com uma grande quantidade de fãs.
Mas é aqui onde eu encontro os que para mim dão lugar às melhores adaptações.
A História de Violência criada pelo grande John Wagner, criador de Judge Dredd, foi adaptada com maestria pelo grande David Cronenberg e é talvez a melhor adaptação de um romance gráfico para o cinema.
Aqui o Cronenberg não está preocupado em utilizar a visão da arte sequencial para criar a sua narração visual. O Cronenberg está preocupado em extrair a essência da obra, de forma a conseguir passar essa essência para o cinema e ela continuar a funcionar, num meio diferente. E ao mesmo tempo que faz isso, o argumento é limado e narrativas que surgem no livro como flashback, são retiradas e dão lugar a uma narrativa linear, que nunca volta a atrás para acrescentar algo que ainda não sabíamos. Assim, temos um filme muito enxuto, que vai directamente ao assunto e que ao contrário do livro, encontra uma reflexão sobre a origem da violência:
- É hereditário?
- É algo do qual não nos podemos esconder?
- É a nossa própria natureza, por muito que não o queiramos?
Infelizmente não são tantas quanto deviam ser, as adaptações de romances gráficos para o cinema. Confesso que este ano, teremos uma feita pelo grande David Fincher e se correr bem, se tiver sucesso, pode ser que seja algo que passe novamente a fazer parte do negócio dos filmes.
Universo Cinematográfico Marvel
Parece-me que é justo dizer que apenas três filmes deste universo seguem de perto os comics: o Homem de Ferro, o Capitão América e o Doutor Estranho.
Estes filmes de origem são os que seguem uma estrutura mais semelhante com os comics e os restantes, vão buscar conceitos e sagas que são conhecidas da editora. Não é de estranhar que o evento Guerra Civil tenha o mesmo nome de um comic, mas que não seja assim tão parecido. Trata-se de uma história nova que tem um branding conhecido.
Isto dá aos criadores a possibilidade de criar novas histórias ou de revisitar, histórias clássicas da editora com uma nova abordagem. Penso que o auge desta forma de produzir adaptação está nos excelentes Vingadores: Guerra Infinita (inspirado no Infinity Gauntlet) e Vingadores: Endgame (este uma criação original, só possível no cinema). Daí que Vingadores Endgame deva ser o filme do MCU que mais utilize a seu favor o facto de estar no cinema e não nos comics.
E não é de estranhar o sucesso estrondoso que teve.
As minhas 10 adaptações preferidas
Na lista que se segue estão as adaptações que considero melhores, aquelas que ao adaptar o material base, renderam os melhores filmes.
- 10º lugar – Guardians of the Galaxy
- 09º lugar – Infinity War / Endgame
- 08º lugar – Batman 1989
- 07º lugar – Road to Perdition
- 06º lugar – The Batman
- 05º lugar – The Rocketteer
- 04º lugar – Homem-Aranha 2
- 03º lugar – Scott Pilgrim Vs The World
- 02º lugar – História de Violência
E qual é a melhor de todas?
Se o História de Violência é um excelente filme, é também relativamente mais simples de abordar uma adaptação de um livro que pretende apenas contar uma história. Não existe um estilo narrativo ou visual no romance gráfico que seja essencial para que a identidade do livro permaneça no filme – a identidade do livro é temática e é passada de forma magistral para o filme.
E que adaptação teria uma missão de grau de dificuldade extremo e executada de forma brilhante?
American Splendor é a meu ver um filme absolutamente incrível que consegue capturar perfeitamente a realidade dos livros que o autor Harvey Pekar foi criando ao longo de décadas.
Então, temos um livro de BD underground, em que o argumentista fala da sua própria vida, dos assuntos banais do dia-a-dia e é isso que é interessante. A vida de Harvey Pekar está rodeada de pessoas estranhas, cativantes, bizarras e a sua personalidade também não ajuda a que essas situações se mantenham longe dele.
Desta forma, como adaptar algo em que dezenas ilustradores o ilustraram, mas o Harvey Pekar escreveu sempre, sendo um narrador em todas as suas histórias.
Os realizadores Shari Springer Berman e Robert Pulcini eram realizadores de documentários e perceberam que no fundo, estavam a lidar com um documentário da vida de um indivíduo, que em vez de ficar registado em papel, teria de ficar registado em filme. Desta forma, o filme passou a ser mais uma versão dos acontecimentos da vida de Harvey Pekar e é interessante ver o próprio Pekar a ver o actor Paul Giamatti e dizer “esta é a minha versão aqui”.
E aí está um dos trunfos da adaptação – se nos comics Pekar escrevia os textos na narração, no filme teria de ser Pekar a falar esses mesmos textos. No fundo, o filme seria nada mais que a nova plataforma que o Harvey tinha para mostrar ao mundo a sua vida.
Todos estes aspectos são muito subjectivos, mas penso que qualquer que seja a adaptação, ela será sempre beneficiada se houver uma adaptação de forma a que se consiga retirar proveito do novo formato.
Como tinha dito no início, pareceu-me que apenas no meio, a série do Sandman se começou a desamarrar do comic e a ter a sua identidade própria como série de televisão. Isso é óptimo, porque melhora a adaptação e pode gerar rumos que surpreendam o espectador que já conhece os comics.
Para terminar, não podemos esquecer que se os autores trabalham para um formato de BD, têm de ter preocupações diferentes das que existem para o cinema. A pior coisa que pode acontecer, é a criação de banda-desenhada como um storyboard preparado para o cinema – mesmo que a história seja boa, os autores não tiraram proveito das inúmeras possibilidades que a BD lhes dá.
Digo isto, o Sandman está a trilhar um novo caminho – uma série de televisão que procura adaptar fielmente todos os arcos narrativos de uma obra extensa. Aqui está algo que será bem falado e trabalhado no futuro.