É para isto que eu escrevo os meus textos. Para que as pessoas os possam ler e, acima de tudo, identificarem-se com cada palavra escrita naquela folha de papel. Recebo imensas mensagens sobre os textos que escrevo, mas confesso que as mensagens que recebi sobre o texto acerca dos guardas prisionais foram as que mais me marcaram.
São pessoas que vivem aquilo que eu escrevi, sentem tudo aquilo e, acima de tudo, têm a necessidade de expressar outras realidades de outros estabelecimentos prisionais espalhados pelo país.
Começaram por agradecer o facto de eu ter escrito sobre eles e logo se disponibilizaram a ajudar-me a expressar a opinião deles, muitas vezes ignorada. Por isso, este texto é em homenagem a eles, que com todo o orgulho, coloco em palavras minhas, o que eles vivem diariamente e ninguém sabe.
Vou falar de casos em particular, com nomes fictícios, em respeito à privacidade deles e não nomeando, é claro, o estabelecimento prisional em que trabalham. Aviso só que vai ser um texto longo, mas que vai valer muito a pena, acreditem.
Vamos começar pelo “Mário”
O “Mário” é guarda prisional há cerca de 20 anos, num estabelecimento prisional em Portugal. Reviu-se em cada palavra escrita por mim no anterior texto, “O Outro Lado da Moeda”.
Quando lhe perguntei o que, aos seus olhos, significava ser guarda prisional, “Mário” apenas disse uma palavra: “Multifacetado”. Para além da função de garantir segurança, um guarda também é psicólogo, enfermeiro, a voz amiga que está sempre ali e muitas vezes é um “meio para atingir os fins”. Sim, os guardas prisionais são aquelas pessoas que estão sempre na linha da frente, quando há situações de perigo. E sim, existem situações perigosas numa cadeia.
“Mário” recorda o episódio que mais o marcou enquanto guarda prisional.
No início da sua carreira, viu um recluso, condenado à pena máxima, empunhar uma faca artesanal, a um colega de serviço. “Mário”, sem pensar duas vezes, largou o seu posto e foi em socorro do camarada, colocando-se à frente da porta. Este guarda prisional temeu pela própria vida. Temeu que aquela faca artesanal pudesse feri-lo a ele ou ao seu colega. Temeu que aquela arma branca, o perfurasse e o matasse ali mesmo. No entanto, a situação ficou resolvida, porque um outro recluso interveio e conseguiu “demover o atacante”. Isto é apenas uma das situações a que este profissional está sujeito.
As agressões aos guardas prisionais têm vindo a aumentar nos últimos anos, que, como já referi, são os que estão na linha da frente. Não é preciso muito para se virarem contra um guarda: uma visita ou saída precária recusadas, um negócio (ilícito) “frustrado”, tudo serve para que o guarda prisional seja a carne para canhão.
Quando questionado, sobre a maior preocupação no EP onde trabalha, “Mário” afirma que são as doenças infecto contagiosas, que mais o preocupa. Sim, vocês leram bem. Reclusos com as mais variadas doenças, que podem ser facilmente transmitidas aos GP, com intenção, muitas vezes, de vingança. Muitas vezes são detetados casos de tuberculose, mas já é tarde. Não existindo um médico permanente neste EP, os reclusos são vistos por um enfermeiro, mas quem faz a ingressão do preso é o guarda prisional. Sendo ele a ter o primeiro contacto, quem garante que não está já em fase de contágio? Mas não, não são só estas, as condições, a que os guardas estão sujeitos.
O guarda é quem leva sempre com as culpas, é o único culpado (aos olhos dos reclusos). Até mesmo quando a comida não é do agrado deles, viram-se contra os guardas. Muitos deles fazem pressão psicológica, de modo a conseguirem captar o profissional, para que ceda às suas vontades. Em algumas situações, partem mesmo para a violência, quando, por exemplo, escondem objetos ilícitos e sabem que vão ser intercetados. Sim, muitos reclusos conseguem esconder objetos, que ao longo do tempo, vão transformando em armas brancas.
E aqui entramos noutro patamar. As Rusgas.
Segundo “Mário”, o plano de atividades prevê que existam duas rusgas anuais em cada estabelecimento prisional. As buscas são feitas em zonas de circulação dos reclusos, mas este profissional, afirma que a maior apreensão de objetos ilícitos, acontece quando são feitas as rusgas surpresa. Estas rusgas surpresa, acontecem quando existe suspeita sobre algum recluso, de que possa ter em sua posse, algo ilícito. Falamos de telemóveis, facas, estupefacientes e até bebidas alcoólicas. São todos guardados onde menos se pensa. É aqui, que também vemos como um simples pedaço de madeira, se pode transformar numa “arma” afiada e mortal. Sim, imaginação não falta a quem tem demasiado tempo para pensar.
E agora, vou-vos responder à pergunta que toda a gente me fez, quando disse que ia escrever sobre os guardas prisionais: afinal o que faz um GP durante os longos turnos de 16 horas?
“Mário” conta que o dia de um GP começa com a abertura geral e a contagem dos reclusos, sendo que trabalha num EP de reduzidas dimensões, mas com 65 reclusos. No dia em que me enviou o e-mail a agradecer pelo meu texto, “Mário” tinha acabado de ingressar um recluso no sistema, como o próprio afirma “vulgo “entrado”. Tratava-se de um reincidente, sendo a terceira ou quarta vez que dava entrada naquele EP, toxicodependente (consumidor de drogas pesadas como, heroína, cocaína e crack), na casa dos 60 anos, com um físico completamente descuidado, com um “cheiro nauseabundo” e que, pela experiência de “Mário”, é mais um dos que pertence à dezena de reclusos que ali vão parar, porque independentemente do crime cometido, ali têm um teto.
“É só isso que fazem?”, perguntaram-me uma vez. “NÃO!”, foi a minha resposta.
Não é SÓ isto que os aguardas fazem. Eles têm também de acompanhar os reclusos ao exterior, seja para audiências em tribunais, vigiá-los em consultas e exames médicos nos hospitais, bem como nos locais de trabalho deles, nas visitas e até nas próprias refeições. No meio desta “azáfama” toda, as pausas a que os guardas têm direito, estão “sempre dependentes das chefias” e que muitas das vezes, senão na maioria, nunca são respeitadas.
Cada guarda tem um posto de trabalho e claro que, o tempo de permanência nesse posto é sempre ultrapassado, nunca é respeitado. Faltam efetivos de forma a que, cada guarda possa ter o seu tempo de descanso e não posso deixar de referir, que as condições de trabalho, segundo “Mário”, são “desagradáveis, exercidas em meios hostis, ambientes mal ventilados, pouco iluminados e entregues ao escuro”. As horas que um guarda prisional permanece em pé, são desumanas. Muitas vezes, segundo “Mário”, estão “entregues à própria sorte”.
Contudo, eu quis ir mais longe. Perguntei como conseguia conciliar a sua vida familiar, com tantas horas de trabalho?
“Mário” diz que, ao longo dos anos, aprendeu a criar uma espécie de cortina, de modo a tentar deixar os problemas na cadeia, mas como é obvio, nem sempre é possível e a família acaba por sentir essa cortina a “abrir-se”. “Mário”, disse-me uma frase que me marcou” A profissão acaba, muitas vezes, por moldar, pela negativa as personalidades, nalguns casos, irreversivelmente. “
Contudo, ainda assim, depois de “ouvir” todo este testemunho, decidi que tinha de fazer a pergunta final: “Porque quis ser guarda prisional?”
Este profissional decidiu seguir esta profissão, por intermédio de um familiar, que estava ligado à polícia e que o aconselhou a concorrer, por existir, uma certa “expectativa de que viria a ser uma carreira aliciante”. Tal não se confirmou e “Mário” afirma que se soubesse o que sabe hoje, jamais teria seguido esse caminho.
“Mário”, afirma que, a maior mágoa que tem é que, apesar de todo o estigma “criado em volta do GP”, a sua profissão não é valorizada, não são reconhecidos os riscos de saúde a que estão sujeitos, aos riscos de violência e à falta de higiene a que estão sujeitos. Mas ainda assim, como profissionais que são, vestem a camisola e cumprem todas as funções com o maior profissionalismo e dedicação.
Esta é a história do “Mário”, mas existem ainda outras. Há a História do “Pedro”, do “João” e de uma outra testemunha que vou apenas falar no fim e que irão perceber o porquê.
Vamos agora falar do “Pedro”
“Pedro”, tem 29 anos e é guarda prisional há 3 anos. Fala da sua profissão com um brilho nos olhos. Eu vejo esse brilho. Gosta do que faz. Disse-me uma frase que me ficou na memória: “para seguires a carreira de guarda prisional, ou gostas mesmo daquilo, ou então não vale a pena.”
Ao longo da conversa que fomos tendo, fui percebendo a tentativa do “Pedro” explicar o que era ser guarda prisional. “Pedro” caracteriza, como “algo diferente”. É uma profissão que os obriga a estar em constante evolução, que exige demasiado deles próprios e acima de tudo, “obriga-os” a ser “meios bandidos” para pensarem como um recluso e ao mesmo tempo serem “guarda a 100% para que haja firmeza nas decisões, justos e afáveis no trato”.
Mas o que é preciso para ingressar a carreira de guarda prisional?
“Pedro” conta, que inicialmente tem de se “ficar apto em todas as fases do procedimento”. Falamos de provas físicas, escritas, psicológicas e médicas.
O curso tem uma duração de cerca de 12 meses, abrangendo a parte teórica e física e só depois é que se realiza o “estágio em contexto real”, ou seja, num estabelecimento prisional.
“Pedro” trabalha num EP com cerca de 850/900 reclusos, mas afirma que já chegaram a ser mais de 1300. Questionado sobre qual o momento que mais o marcou enquanto guarda prisional, “Pedro” afirma que não há nenhum caso em específico. “É sempre um ambiente hostil e complicado”, onde têm de ter muito poder de encaixe. Todos os dias é algo novo e todos os dias têm de ser pessoas diferentes. Mas ainda assim, relata três casos que o marcaram: um caso de alteração grave à ordem, enforcamento e tentativa de suicídio após o recluso ter deitado fogo à própria cela.
“Pedro”, vive todos os dias situações reais, que muitos de nós nem sequer sonhamos. São pessoas, que deveriam, a meu ver, ter uma espécie de apoio psicológico. Porém, “Pedro” desconhece que exista qualquer tipo de apoio desse género no EP onde trabalha.
Questionado sobre as condições de trabalho em que está inserido, “Pedro” afirma que poderiam ser melhores. Passam inúmeras horas em pé, horas a fio sem dormir e dormem numa camarata. Estes guardas prisionais dormem num espaço confinado a 11 pessoas, mesmo que não estejam todos durante o mesmo tempo. São camaratas parecidas às do exército, mas um pouco maiores. Para “Pedro”, não é de todo o local ideal para poderem descansar, mas foi o que o EP lhes forneceu e não podem exigir muito.
Estamos a falar de um “quarto pequeno” com cerca de 15 metros quadrados, tem a porta, janela, cama, sanita e lavatório. Tem também um ou mais armários/cacifos e tem tomadas e iluminação. Algumas destas camaratas têm ainda uma cadeira e secretária. É aqui que um guarda prisional “descansa” após os longos turnos de 16horas.
Apesar disso, “Pedro” gosta do que faz. Gosta mesmo. Não se arrepende de ter escolhido a profissão. Essa profissão que os desgasta, que os fazem estar longe das famílias e que acima de tudo, que lhes “tira um pedaço deles”.
Estes profissionais, sempre que podem, tentam ir a casa, refugiar-se e desligarem-se do dia-a-dia deles. Poderem descansar. Poderem dormir. Perguntei ao “Pedro”, como conseguia conciliar a profissão que tem com a vida pessoal e o mesmo afirma que nem sempre é fácil: “Há dias em que levas na cabeça os problemas de casa para o trabalho e vice-versa. Dás por ti a ter uma reação ou atitude em casa como tens na prisão. É instintivo. É algo que se agarra a ti e como acabamos por estar presos, também isso leva uma boa parte de nós”. “Pedro”, afirma que o facto de estarem “presos” acaba por acarretar um stress ainda maior, mas segundo este jovem guarda, desde que exista um bom suporte e compreensão em casa, torna-se mais fácil conciliar tanto os horários como os problemas que sentem no dia-a-dia.
Há muita coisa que ainda precisa de ser mudada na profissão de guarda prisional.
Desde a falta de vigilância, à falta de meios e de estruturas degradadas, muitos aspetos tornam difícil a tarefa destes profissionais de segurança.
Muito se fala em Portugal, de reinserção, mas tal não acontece. Ou se tem segurança ou reinserção. “Pedro” defende a reinserção, completamente, mas não nos atuais moldes. Aos olhos deste guarda, a reinserção deveria ser permanente, ainda mais quando os reclusos saem em liberdade. Deveria existir um apoio continuo e atento dos técnicos de reinserção.
“Pedro” afirma que os reclusos na prisão deveriam sentir a punição pelos crimes cometidos, mas isso não acontece, de todo.
Os guardas prisionais não permanecem as horas todas do dia “enclausurados” na cadeia. Há horas que saem para irem com reclusos, seja ao hospital, seja ao banco, entre outros sítios. E eu aqui, tive a necessidade de questionar, como os guardas se sentem quando as pessoas olham para eles, se sentem que são vistos de forma diferente. “Pedro” respondeu: “claramente que somos olhados de forma diferente. Os elementos da PSP ou GNR, andam no meio de nós desde que somos pequenos. Já os guardas prisionais não. Não é todos os dias que vamos ao médico, ao banco etc., e levamos um homem algemado com dois ou três guardas. O nosso subconsciente pergunta logo” o que terá feito para estar preso”? Há quem nos olhe com orgulho e dizem sempre que imaginam a nossa coragem e não sabem como que é trabalhar dentro de uma cadeia, como há quem nos olhe com desprezo. Deus que é Deus não agradou a todos.”
À pergunta “Porque quis ser guarda prisional?”, “Pedro” afirma que é o mesmo que querer ser GNR, PSP, ou militar, não se escolhe. São oportunidades que surgem no caminho e cabe a cada um decidir se aproveita ou não. Porque segundo “Pedro”, “só se pode dizer que gostamos de fazer isto depois de realmente se fazer. São as nossas decisões que nos tornam o que somos.
Tentei ao longo deste artigo contar por palavras minhas o que estes profissionais vivem todos os dias. As condições em que trabalham, o quanto lhe são retirados, pedaços deles próprios.
Esta é a segunda parte desta extensa reportagem. Espero por vós na terceira e última parte destes testemunhos.