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O menino de sua mãe

Tinha nascido filho único, dum casamento de muitos anos, após muitas tentativas e promessas feitas à família. Um dia as preces foram ouvidas e o menino nasceu. Gordinho, redondo, rosado, sapudinho e cheio de preguinhas. Uma lindeza para a vista e um consolo para a família. O único neto, o único sobrinho, o único menino do casal que tanto o tinha desejado. O Duartinho nasceu num dia escuro, mas iluminou umas vidas que o queriam só para si.

Era a delícia dos que o rodeavam, as gracinhas de todos os dias, a evolução natural e a inocência que se queria perpétua. Foi crescendo, sempre com uns braçinhos com muitas argolinhas e pneuzinhos que acompanhavam o resto. Era o menino perfeito, o filhinho que obedecia e que ouvia todos os ensinamentos. Um modelo. Talvez viesse a ser padre, passar os ensinamentos divinos aos outros, talvez fosse um grande professor, talvez fosse outra coisa qualquer, mas o futuro seria brilhante, com toda a certeza. Nada lhe faltou e aprendeu todas as línguas, as ciências, tudo o que havia para saber. O que ele gostava mesmo eram os selos. Que coisa mais bonita e encantadora!

Foi crescendo e a família foi envelhecendo. Os pais ficaram caiados, com as cãs todas preenchidas, os avós velhinhos, mirraram e desapareceram e os tios, de tão ansiosos pelo futuro do menino, esqueceram-se de viver e apagaram-se. Namoradas não as tinha nem mostrava interesse algum. A mãe ficava mais descansada. Sem as malandras a desinquietarem o seu menino, a vida era bem mais fácil de gerir. Saía sempre com os paizinhos e o seu quarto era o seu reino. Na escola era gozado, mas ele não notava ou não se importava. Tinha outros interesses, outras motivações: os selos, com as suas esquadrias, o seu recartilhado, que ele manuseava com luvas e uma pinça. Eram o seu fulgor e a sua paixão.

Tinha álbuns e álbuns que mostrava orgulhoso quando havia algumas visitas naquela casa. Explicava a origem do rectângulozinho e oferecia água gaseificada. Rapidamente a família colaborou e ele, para agradecer, visitava os tios velhinhos, na província, que muito orgulho sentiam nele. Sentava-se à mesa, prazenteiramente e devorava tudo o que lhe ofereciam: peixe assado com batatas, carne assada com arroz, arroz doce, leite creme, pudim de ovos, tudo o que houvesse. Não se fazia a desfeita à família, tinha-lhe ensinado a mãe, aquela santa.

O menino era um homem, mas ninguém o tratava como tal. Tinha uma barriga proeminente, onde os botões das camisas se debatiam para conseguir chegar ás casa, as calças eram um pouco curtas e notavam-se as meias, que usava muito puxadas, como se fossem uma folha de papel almaço. Usava sempre uns casacos de malha castanhos, muito justos, que não podia apanhar frio e devia defender-se das correntes de ar.

Depois de acabada a escola foi-lhe oferecido um lugar na Câmara Municipal. Ele aceitou. Ia abrir o correio. Os seus olhos vibraram quando soube. Era ali que chegavam aqueles tesouros, muito preciosos, as cartas com os selos. E assim iniciou a sua vida profissional. Era um funcionário exemplar. O pai levava-o sempre a horas e ia buscá-lo no fim do expediente. Se se atrasava ele ficava impaciente e ansioso. Nunca quis evoluir, nem mudar de profissão. Levava para casa aqueles papelinhos coloridos, com desenhos, animais, paisagens, que catalogava, minuciosamente e arquivava em livros muito pesados e forrados a pele.

Uma manhã o pai não acordou. Que incómodo. Ia chegar atrasado e outro iria abrir o correio, ficar com os selos. A mãe chorava desesperada e ele, o Duartinho, tinha uma obrigação a cumprir. E num outro dia foi a mãe e ele já não tinha quem o levasse nem quem o fosse buscar. Ia sozinho e vinha pelo mesmo caminho.

Quando fez 25 anos de serviço deram-lhe um relógio, que ele guardou junto aos seus mais preciosos bens. Nunca o usou. Podia-se estragar. A mãe não lhe tinha ensinado a usar um relógio daqueles. Ficou arrumado. Uma manhã, quando estava a abrir o correio com a faca de cortar os envelopes, sentiu uma dor no peito. Soltou um ai fraquinho e caiu em cima da secretária. Os olhos estavam abertos, a olhar para aquele selo que vinha do Japão. Era bonito, com tonalidades apelativas. Um fio de baba inundou a mesa. Estranharam a falta do correio. O Duartinho já se tinha ido, mas a sua mão direita estava agarrava àquele selo que tinha vindo de tão longe. Era dele, só dele e ia para o pé dos outros que ele estimava como ninguém.

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