O cornípeto observa a chuva desmaiar no chão, sentado no banco dos réus. Hoje quiseram os homens julgar-lhe o pecado, hoje decidiu a humanidade fazer pender a balança sobre a cabeça tentadoramente sedutora do mafarrico. Mas neste dia o céu é um negrume de fúria divina, a deidade não se compadece perante a tentativa de por fim formalizarem os homens, na figura do anjo caído, a profundidade da sordidez que lhes cresce no goto. O julgamento tem início e as alegações iniciais, em favor do réu, ecoam nos corredores do espaço e do tempo, e o céu estremece.
Não é verdade que o meu cliente seja mau e maquiavélico.
Apelidam-no de blasfemo, à sua passagem fazem troar Toccata e Fuga, gritam-lhe obscenidades. Acusam-no de se imiscuir no corpo dos humanos quando na verdade está posto em sossego no forno incandescente que se tornou o seu calvário. Classificam-no de Belzebu numa clara alusão ao cheiro pestilento a enxofre, quando este é somente um dos efeitos nefastos da penitência a que foi sujeito.
Contemplai, a vítima de bullying em massa, por quem não resta compaixão!
Caluniado em praça pública, o bom nome do meu cliente é diariamente atentado sem que seja constituída prova, sem dúvida razoável, que sustente as acusações. O meu cliente não é a origem de todo o mal mas foi transformado num bode… expiatório!
Deixai-me esclarecer: o que vedes é a cruel tentativa purgatória dos pecados do Homem na pessoa do réu. Diante de vós está pois a vítima de uma infame cabala, atirado do topo das nuvens para o centro da Terra, relegado para os confins do inferno, qual fauno dos bosques flamejantes. Não terá sido Satan vítima da misericórdia de Deus perante a mortal humanidade? E que espécie de deidade, ela sim sádica, cobre de pelo inflamável as pernas deste outrora arcanjo, cujo castigo, omissa a presunção da sua inocência, é apodrecer num trono de chamas? Qual o significado de semelhante injustiça, deveis questionar-vos, como esta que aqui vedes sentada no banco dos réus? In dubio pro reo.
A defesa não tem mais nada a acrescentar.