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O futuro ideal, a crise universal e que mudança cabal?

O mundo é feito de dor – a vida é feita de ternura.

Raul Brandão

Há 111 anos, F. Marinetti lançou o seu «Manifesto do Futurismo» – e que Mário de Sá Carneiro deu a conhecer em Portugal –, contemplando ele: “Queremos glorificar a guerra – única higiene do mundo –, o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos libertários, as belas ideias pelas quais se morre e o desprezo pela mulher”. Nele também defendia a abolição dos museus, das bibliotecas e das academias. Obviamente não integro nem subscrevo grande parte dessas questões futuristas, do século passado, nem pretendo aqui incorrer em outros tipos de futurismos, com o perigo e risco sempre inerentes. Porém, e diferenciando ‘futurismo’ de ‘futuro’, é este segundo que abordarei – bordado de ideias e emoções.

Durante esta pandemia, criei uma iniciativa pessoal de ir ‘COnVIDando’ amigos vários – num grupo de e-mails chamado «Partilha com Vida & COnVIDada» –, a tomarem parte em alguns meus artigos publicados, ao que chamo de «crónicas convocadas e cooperadas». Esta não será diferente. Desafiei e alguns aceitaram responder, dando a sua opinião à seguinte questão: e depois do covid-19? Como será o retomar social? Surge, aqui e assim, este «Futuro Manifestado» (ao invés do «Manifesto do Futurismo»), por…

:: ALBINO PEREIRA (professor e diretor do Agrupamento de Escolas de Vilela) » “Tal como as promessas de ano novo, graças à nossa capacidade brutal (para o bem e para o mal) de depressa tudo esquecermos, regressaremos à vidinha precipitadamente, ordeiramente e, por fim, ordinariamente”.

:: ÁLVARO LABORINHO LÚCIO (juiz e ex-ministro da Justiça) » “Dizem-me que da crise nasce sempre uma nova oportunidade. Será? Sei que, ao sairmos, não nos vamos abraçar, uns aos outros; não nos vamos tocar, uns aos outros; não nos vamos juntar, uns aos outros. Resta-nos respeitar-nos, uns aos outros. Cada um a cada outro. Aproveitemos, então, a oportunidade”.

:: CRISTIANO MAGALHÃES (assistente técnico na C. M. Marco de Canaveses) » “O retorno à vida normal pós covid-19 vai trazer profundas alterações nos relacionamentos e interações sociais”.

:: DANIEL SAMPAIO (psiquiatra e professor catedrático jubilado) » “Precisamos de reinventar o amor em todas as idades”.

:: EUGÉNIO DA FONSECA (presidente da Cáritas Portuguesa) » “Julgo ser conveniente a criação de um Plano de Contingência Social para providenciar que a ninguém falte o acesso a bens essenciais e que não haja uma escalada de endividamento. Um Plano com medidas que respeitem a dignidade das pessoas. A sabedoria do povo diz que «vale mais prevenir que remediar»”.

:: FRANCISCO LARANJO (pintor e diretor da FBAUP) » “A nossa relação com o mundo nunca mais será a mesma”.

:: JORGE MIGUENS (formador e tenista) »

“Voltar ao dia-a-dia.

Sentir a alegria.

Na vida relação

dar aquele abraço

que sem embaraço

se revela precaução”.

:: JOSÉ MIGUENS (engenheiro civil) » “Será assustadoramente diferente, inquietante, pleno de ansiedade e desconforto mas, esperemos, motivador!”.

:: MANUEL SOBRINHO SIMÕES (médico: patologista e diretor do IPATIMUP) »  “Estamos bem de saúde mas chateadíssimos, tristes e assustados com a incerteza”.

:: MIGUEL LEÃO (médico: neuropediatra e geneticista no CHSJoão) » “Manter o estado de emergência psicológico e cumprir as instruções das autoridades de saúde”.

:: ROBERTO CARNEIRO (professor universitário e ex-ministro da Educação) » “Penso que a mudança profunda que todos nós sofremos por virtude da crise do covid-19, de que fomos também agentes ativos, nomeadamente na aplicação bem sucedida de um generalizado confinamento e isolamento social, configura aquilo que se designa por um vasto conjunto de inovações disruptivas (vd. Clay Christensen, HBS) no modo já consuetudinário de organização familiar, social e produtiva. Já é um lugar comum falar-se no Portugal 3.0, que será manifestamente distinto dos Portugal 1.0 e 2.0, defrontando-nos com o enorme desafio de ver longe nas transformações que terão de ser introduzidas e de redesenhar criativamente, mas também com pragmatismo, as mudanças nos mais variados segmentos da atividade do cidadão no pós-covid-19. Vale a pena, referenciar ainda a profunda alteração dos valores que nos aprisionavam na sociedade de consumo irrestrito e do individualismo competitivo para uma outra ordem ética na qual relevam os valores da solidariedade (ou, como prefiro, da fraternidade cristã) para com o outro, nosso semelhante, do respeito pelos recursos finitos de um planeta perante o qual temos o mandato de dominar (vd. o Livro do Génesis), muito embora sem o destruir, e na qual sobressai, ainda, uma relação pessoa-tecnologia equilibrada com prevalência dos valores de humanidade e da superioridade do toque humano sobre a eficácia de uma digitalização progressiva, sem fronteiras nem limites, que tinha tendência para se apropriar de todo o nosso relacionamento comunicacional e produtivo, numa redução extremada da nossa sociedade bipolarizada ex-novo em torno dos ultratecnológicos (os “novos ricos”), por um lado, vs. os sem-abrigo digital (os “novos pobres”), por outro lado”. 

Desde então e passados mais de 100 anos, a perceção e perspetiva do futuro progrediu ao longo das décadas. Até hoje e depois do amanhã, já que “a certa altura, alguém anunciou que o futuro havia acabado, mas as coisas não são bem assim, porque o futuro nunca acaba”, como escreve Franco Berardi (em «Depois do futuro», de 2019). Este autor contrapõe o sentido do futuro entre as civilizações antigas/tradicionais – para quem “a visão do futuro é maldita” (visão só permitida aos deuses) – e as modernas que, na confiança do futuro, esperam dele “a realização das promessas do presente”. Alerta, ainda, que o futuro transforma-se ameaçador “quando a imaginação coletiva se torna incapaz de ver possibilidades alternativas para a devastação, a miséria e a violência”.

No mundo cristão, o futuro tem uma acessão escatológica: de sentido descendente, na Parusia e, ascendente, na Vida eterna. Esperando-se, de ambas, a continuidade do paraíso terrestre.

O nosso pensamento, atual e futuro, identifico-o como devendo ser cristalizado à imagem do poeta: «tudo quanto é humano me interessa» (Jorge de Sena). Seja como for o futuro, algo é certo: não podemos deixar de humanizar cativados e de cativar humanamente (“criar laços humanos”, como explicava o Principezinho de A. Saint-Exupéry). Ainda continua o mesmo poeta: “A minha terra não é inefável. A vida da minha terra é que é inefável. Inefável é o que não pode ser dito”. Não permitamos que o bioquímico, o tecnológico, o hiperfísico se sobreponham e reprimam o ideal do coração humano: o sentimento realista oxigenado e fluido pelo/com pensamento humanista.

Em 2006, o Nobel da Paz Desmond Tutu escrevia assim – exímiamente –, parecendo adivinhar sobre algo desta época trágica: “Não podemos ser humanos isolados. Um ser humano solitário é uma contradição. Somos humanos precisamente devido às relações: somos seres relacionais ou não somos nada”. Eis o que é e deve ser a amada Humanidade – para o qual é chamada –, sem mais estar em acamada debilidade. Seria inqualificável e nada teríamos aprendido desta atual ferocidade.

Concordo com Luís Portela que, em entrevista à RTP, disse que “não foi o coronavírus que parou o mundo, mas a insensatez da humanidade, a embriaguez do consumismo”. Em 2001, Stephen Bertman caracterizava que a cura para os seres humanos abrandarem a velocidade em que viviam/vivem, magnetizada pela “cultura do sensacionalismo” e da “transciência”, seria “desacelerar as nossas vidas o bastante para as recuperar” (em «Hipercultura»). Com esta lição covidenha, que foi dada mesmo a quem não quis aprender, parte desse desaceleramento foi conseguido. Terá sido e/ou será o suficiente?

O futuro será como o presente: uma «competição» dualista entre a continuidade e a rutura. Por qual opta cada um/a de nós? Ou vamos deixar que a letargia da nossa não resposta faça com que outros decidam, por nós, o futuro? Tenho lido e ouvido gente considerar que algo mudará, sentindo-me encaixar neste rol de confiantes; outros – mais relutantes –, que ficará tudo na mesma… Enquanto, para Raúl Brandão, “se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava com os mesmos erros e paixões. Não me arrependo, nunca me arrependi”, para Ailton Krenak esta pandemia obriga o mundo a reconsiderar o seu estilo de vida e atenta que o «voltar à normalidade» não poderá jamais ser sinónimo de a humanidade se “divorciar da natureza, devastar o planeta e cavar um fosso gigantesco de desigualdade entre povos e sociedades”. E deixa o repto alarmante: “Temos de parar de ser convencidos. Não sabemos se estaremos vivos amanhã!” (em «O Amanhã não está à venda»).

Boaventura de Sousa Santos descreve três aspetos alusivos aos vírus: a normalidade da exceção – visando que “o objetivo da crise permanente é não ser resolvida”; a elasticidade do social – “a ideia conservadora de que não há alternativa ao modo de vida imposto pelo hipercapitalismo cai por terra. (…) Ou seja, as alternativas voltarão da pior maneira possível”; e a fragilidade do humano – “a melhor maneira de sermos solidários uns com os outros é isolarmo-nos uns dos outros, sem nem sequer nos tocarmos. É uma estranha comunhão de destinos. Não serão possíveis outras?”…

Outros autores mais atuais – como Marcial e Grumbach – defendem, na lógica de que o futuro se constrói com base na ação presente, que “a premissa é de que o futuro não está, em larga margem, predeterminado e, portanto, pode ser moldado pela ação dos atores sociais”.

Para Jacques Marcovitch, “o grande repto às inteligências e lideranças no século XXI é a chamada «crise universal do futuro», que podemos ler como o conjunto de questões ambientais não resolvidas e cujo peso incidirá sobre as próximas gerações” (em «Para mudar o futuro», de 2006). Mais adiante acrescenta que “será um erro supor um futuro sustentável dependendo apenas da maior disposição política de governos e seus diplomatas”. De certo modo, Yuval N. Harari corrobora ensaiando que, «na batalha contra o coronavírus, faltam líderes à humanidade»; que muito e prolongado isolacionismo gerará maiores colapsos e que o verdadeiro remédio está na cooperação entre os povos. Não na segregação.

Já Hazel Henderson (em «Diálogo para o futuro», do mesmo ano), considera que a criação do futuro – e o seu planeamento duradoiro – passa pela Mulher, que “tem uma perspetiva de longo prazo, porque ela passa 20 anos educando, criando uma criança”, lembrando que, depois, “são as crianças que vão representar o futuro”. Noel Parker entende que o futuro passa pelas revoluções: “no contexto da globalização pode ser útil colocar, então, como a questão do futuro da narrativa revolucionária sob a globalização” (em «The Future of Revolutions», de 2003).

Ao contrário de Einstein, que dizia nunca pensar no futuro – “ele não tarda em chegar” –, pensar e/ou pulsar o futuro não é de agora. Já tantos o fizeram e continuarão a fazer. Milan Kundera apela à variação na ideia comum sobre o passado e o futuro: “é o mundo que a nossa vontade pode mudar”. Só depende de cada um/a de nós, de querermos mudar e maus hábitos largar; de termos e proporcionarmos o melhor futuro possível para as gerações vindouras. E nessa dependência há, sobretudo, dois conceitos venenosos que têm de, definitivamente, ser erradicados por todos! Caso contrário, não vamos lá. E são eles: a ganância e a estupidez. Se não os destruirmos, sucederá o fatídico anunciado por Stephen Hawking: ambos “são o que acabará com a raça humana”… Como ressalva J.-M. Besnier, “a mudança tem sempre a ver com a separação de uma situação em risco de ser vivida como necessária. (…) A saída da situação [como as vigentes], de acordo com o fundamento humanista, requer a força ou o saber para lá chegar. É no antidestino que o humanismo e o político se encontram”.

Façamos o que fizermos, agora e depois e tanto individual como coletivamente, não esqueçamos que “são os acontecimentos da nossa vida que nos moldam, mas são as nossas escolhas que nos definem” (a. desconhecido). Pois, cada um determina o seu destino e, às vezes, os destinos dos outros.

Perspetivar o futuro na ânsia de que mude o que tem de ser mudado, faz-me lembrar um excerto do poema de A. A. Milne:

(…) “Para onde vou? Não posso saber.

Para onde vais, que importa se fores?

Será para os bosques ondem crescem flores?

Para qualquer sítio, não quero saber.”

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