Pois é.
Pois foi.
O comprometimento com este espaço obriga a que se assuma uma regularidade no que à publicação diz respeito, o que de resto não comporta qualquer tipo de estranheza face à natureza da coisa.
Ora, acontece que este facto pode colocar em quem tem a ousadia de achar que sabe aglomerar palavras e significados, intenções e entoações e arrumá-las bem arrumadinhas, para formar frases que possam produzir algum sentido, uma dificuldade acrescida e que é exactamente aquela que desta vez a mim me tocou.
Claro está que quem tem a presunção (inteiramente assumida) de pensar que sabe escrever e que pode fazê-lo em público, tem de perceber que isto de escrever é coisa severamente trabalhosa e extenuante (quando lhe dá para isso). É cansativo. É trabalho criativo, puro e é assim que tem de ser reconhecido e entendido. Escrever exige, sobretudo, que se saiba (ou não, e este texto assumir-se-á perante vós como prova disso mesmo) o que se vai escrever, dizer, analisar, ou criar. Quando isso não acontece, é que é o cabo dos trabalhos.
O que se passa é que nestas andanças da palavra escrita e corrida – como corridos ficam os cortinados no final de cada tarde solarenga de Verão, em que as folhas das árvores, alegres e vaidosas, baloiçam em danças coreografadas nas esquinas dos troncos das suas vidas -, acontece que, por vezes, não há absolutamente nada a dizer e este é justamente o caso que agora me assiste numa altura em que pouco falta para terminar o prazo de entrega, que combinei com o editor, se esgotar. Preocupado, porque sou um individuo que tem algum brio e, sobretudo, que faz questão de cumprir e não faltar com a sua palavra, resolvo abrir o jogo e vou falar com ele.
– Olha lá Miguel – digo-lhe sem rodeios – estou com um problema e não faço puto ideia de como o vou resolver.
– Olá Martim! Credo homem, que se passa?
– Epá, não sei bem como te explicar isto, mas… não tenho nada para dizer, ou para escrever e tão pouco me ocorre o que quer que seja para o artigo que tenho em falta contigo. Posto isto, esta semana digo-te já que, ou não escrevo nada, ou… a única coisa que me ocorre é escrever exactamente sobre isso… – digo-lhe em tom desavergonhado e de brincadeira – Posso atrever-me a discorrer sobre o estranho caso do cronista que não tem, ou neste caso, não tinha, nada para dizer, para falar, para escrever… o que achas, pode ser? – Perguntei-lhe em jeito de teste, assim como quem não quer a coisa, só vou atirar o barro à parede para ver se cola.
O que se seguiu foi verdadeiramente inenarrável. O Miguel assentiu imediatamente com um redondo e despreocupado SIM, acrescentando ainda que não havia problema algum em escrever um texto destes, e eu digo-lhe que ele está a ficar doido e ele diz-me que confia plenamente em mim e que com um título destes lhe é impossível dizer que não. Eu sustenho-me em pontas, como se me preparasse para um coreografado plié, e penso “já me lixei” (com efe, ou com fê, naquele tão típico vernáculo português que, dito com a colocação que lhe merece a situação, soa como soam poucas palavras e expressões nesta nossa língua).
Fiquei a pensar que ele é ainda mais “avariado” do que eu, porque confia nas minhas supostas qualidades que faz questão de enaltecer. É um tipo deveras simpático, que ainda não tive a honra de conhecer pessoalmente, mas que dá ares (gosto tanto quando as pessoas dão ares de qualquer coisa) de ser um bom tipo, do tipo que se revela um óptimo líder, um motivador capaz de liderar até uma caravela cheia de marinheiros famintos e impregnados com escorbuto e que não sabem sequer para onde se estão a dirigir.
Ora posto isto, decidi então começar a relatar-vos o estranho caso do cronista que não tinha absolutamente nada para dizer. Pode fazer-se vida disto hein!?
William Faulkner disse-nos, há mais ou menos sessenta anos, que a certa altura na vida de um homem, este se torna consciente de que pensa e depois começa a pensar em palavras e que posto isto, a certa altura, o homem apercebe-se que não tem pensamento algum na cabeça, em vez disso tem apenas palavras. Então, tendo esta premissa presente desde o início desta atribulada dissertação, achei que de facto não haveria problema algum em contar a história do cronista que não tinha nada para dizer, para fazer, para contar, mas afinal de contas o que estou eu para aqui a inventar?
Tu queres ver que tudo aquilo que estive aqui para aqui a dizer até agora foi tão simplesmente um arremessar de palavras fora? Naaaa…
Afinal de contas, esta é uma crónica de nada escrita sobre coisa alguma, por alguém que não tinha e continua a não ter absolutamente nada para dizer e, sobretudo, que mereça ser retratado e publicado em forma de crónica.
O escritor (olha para ele olha, com que então já somos escritores!?) tem momentos destes. Momentos polvilhados ao de leve com o vazio de ideias e com sequências de pensamentos de nada, como açúcar e canela displicentemente entornados por cima de um pastel de nata esfomeado. Momentos em que não tem rigorosamente nada para acrescentar a assunto algum. Pior, pura e simplesmente não lhe apetece sequer dizer o que quer que seja sobre coisíssima nenhuma, porque efectivamente não se justifica, não carece, não faz a mínima diferença se vai, ou não escrever sobre determinada coisa, ou tema, ou o que seja que haja para escrever.
Não que tenha a mente entorpecida, ou paralisada, não que tenha perdido a vontade de escrever sobre o que vejo, o que penso, o que sinto, ou o que sonho. Simplesmente não me ocorre absolutamente nada. Zero.
Ora e perante isto, o que faço? Decido, num momento iluminado, escrever-vos com uma certa petulância abnegada para vos contar exactamente o que sente um tipo que escreve e o faz como compromisso, e que subitamente se encontra perante o dilema de não ter absolutamente nada para dizer. Não deixa de ser estranho navegar por entre o teclado, por entre a noite, as noites, os dias, procurando incessantemente encontra a melhor forma de vos explicar o quão desagradável, mas ao mesmo tempo libertador, é o sentimento de não ter absolutamente nada para dizer seja a quem seja. Chega mesmo a ser ligeiramente engraçado. Ligeiramente.
Costumo falar sozinho e melhor do que isso, falo com as coisas, com os objectos: o que por si só já me faz parecer um tipo um tanto ao quanto… parvo. A sonolência cómoda e opinativa e crítica que me assolou permitiu-me, por outro lado, resgatar ao Tempo uma sensação antiga e estupidamente perdida – escrever muito sem dizer grande coisa e, sobretudo, pensando menos ainda. Costumava fazer este exercício há alguns anos. Sentava-me. Ou não. Tentava esvaziar a mente e não pensar em nada mais que não uma qualquer coisa que me aparecesse diante dos olhos, no exacto momento em que começava a deixar as mãos levitar por cima do teclado, que se tornou íntimo da ponta dos meus dedos, ou o mesmo processo, mas com a mão direita e a caneta por cima da folha que gritava cheia de sede. É um exercício interessante, que pode produzir resultados, ou tornar-se numa verdadeira cacaletria (não, a palavra não existe e eu sei bem que não existe, mas para cacafonia, cacaletria) desconexa. Lançada que estava a batalha entre o escritor e o… nada, preparei-me, então, para tentar começar isto por algum lado e escolhi começar pelo princípio (que original), mas não pelo 1º parágrafo, pelo título. Tomada que estava a decisão, imediatamente brotou do meu pensar o estranho caso do cronista que não tinha nada para dizer. Como? Não sei.
Foi exactamente isso que senti naquela manhã, quando me dirigi ao Miguel para lhe dizer precisamente que não tinha absolutamente ideia alguma para escrever sobre o que quer que fosse. Normalmente ele costuma dar-nos umas sugestões, mas como pensei imediatamente nesta idiotice, disse-lhe – como já vos contei, mas que agora insisto em repetir – que a única ideia que tinha era escrever qualquer coisa a esse respeito, a propósito de não ter puto de ideia do que iria escrever. Fui tão estupidamente perspicaz que o convenci e isso trouxe-me até aqui. Até vós. Não para vos informar. Não para vos divertir. Não para vos iluminar o caminho, ou para vos mandar passear o cãozinho. Nada disso. Apenas me atrevi a escrever este texto, porque tinha a leve esperança de que o mesmo pudesse interessar a uma pessoa que fosse. Escrevi-o na esperança de que vocês aguentassem até ao fim do mesmo só para conseguirem perceber se o mesmo acaba. Na esperança de que se tornasse visível o mais óbvio: não precisas de ter sobre o que escrever, precisas sim de o fazer, de trabalhar, de treinar, de tentar, experimentar, testar, escrever e apagar, acertar e errar. Ler e ler mais ainda, começar sem saber sequer onde a história finda. Deixar o pensamento sentir-se e achar-se acomodado é esquecer que a escrita é também um pecado que se quer cometido e praticado tanto quanto nos for possível.
Por isso, caríssimos e ilustres leitores que se prestaram à dura tarefa de ler este texto até esta mesmíssima e tão útil marca de pontuação (sai uma vírgula para facilitar a respiração), só posso dizer-vos que as palavras permitirão sempre que se digam coisas novas (que génio), que se escrevam e reescrevam as histórias, que se perpetuem e transmitam as adocicadas e pecaminosas lembranças dos cheiros, dos aromas, dos paladares, dos sabores, dos doces em forma de paisagens e pessoas que os olhos conheceram, provaram e saborearam até ao infinito e que se contem e escrevam as memórias, mesmo antes de chegarmos a velhos, porque nessa altura já elas partiram para aquela parte deserta onde o olhar já não chega. Já não vai.
Só as palavras têm esse tremendo e encantador brilho de poder, que, felizmente, apenas nas pessoas é possível encontrar. Porque até mesmo o pensar que nos deu de prenda a vida, seja em forma de imagens, sons, cheiros, cores, senhoras, ou senhores, tudo isto, tudo aquilo só é possível de ser o que quer que seja, quando são encontradas as palavras que lhes cabem no corpo, que lhes encrostam na pele e lhes dão forma, lhes dão alma e as fazem conceitos, as fazem palavras, coisas possíveis de serem descritas, ditas, lidas, contadas, lembradas, vividas e apagadas.
Por último, deixo-vos com algumas (não muitas que já vos macei por demais) palavras, que num tom perene e imortal foram deixadas para nos ensinar que ”As palavras são a nossa condenação. Com palavras se ama, com palavras se odeia. E, suprema irrisão, ama-se e odeia-se com as mesmas palavras”. Eugénio de Andrade
Credo! Pode mesmo escrever-se um texto sem ter absolutamente nada para dizer.