O dia em que morri

Lembro-me do disco de vinil a tocar. Aquele maravilhoso som tão característico, tão sujo, tão verdadeiro. Tu adoravas vinil. Eu tinha vinte e dois anos. Entrei em casa e tocava uma música que eu nunca mais consegui ouvir, nem recordar, nem mencionar. Deixei as chaves no hall e fui até à sala. Era o terceiro dia de Verão e a casa estava quente, abafada, mas na sala soprava uma brisa calma, os cortinados mexiam-se em câmara lenta, a música ficava mais alta, e tu rodopiavas o teu vestido leve. Não me viste imediatamente. Eu deixei-me ficar à porta, só a inalar o perfume único daquele dia único. Viste-me. Correste para mim, a cara desesperada que só mais tarde percebi. Abraçaste-me, de uma forma louca e apertada, a pedir que te salvasse. Depois, correste para a janela e saltaste.

Saltaste. Saltou. O amor da minha vida saltou.

Só mais tarde percebi o desespero, o apelo, percebi a tristeza daquela cena que eu tinha confundido com felicidade pura. Não era dançar, tu fazias outra coisa qualquer. Esperar, talvez. Esperar por mim. Ou afastar os demónios, as vozes, os medos. Não percebi, nunca vou perceber, e nem sei se algum dia te perdoarei.

Naquele abraço, escondeste-me uma carta no bolso. Uma carta é hipérbole – escondeste-me um pequeno papel onde só dizia “Sê feliz”. Sê feliz. Tu sabias que me estavas a retirar todas as hipóteses de felicidade, que estavas a cicatrizar-me para o resto da vida.

Aceitei-te. Aceitei os teus demónios. Aceitei a parte negra da tua alma como um presente, como a forma mais complicada, masoquista, sádica e fiel de me acorrentares ao teu amor. Só damos essas prendas às pessoas mais próximas – o nosso lado temível. Mostramos total confiança quando permitimos que os outros nos toquem nas feridas e nesse lado escondido em que nem nós queremos entrar. Esquecemo-nos que já lá estamos dentro. Esqueci-me que estiveste lá dentro toda a tua vida, e quis acreditar que era suficiente ficar lá dentro contigo. Não quis perceber que tu só querias era sair para fora desse quarto escuro e escondido, dessa gaveta suja e desarrumada, querias que eu te tirasse de lá e eu só soube entrar contigo. Demorei duas overdoses a perceber. Demorei duas overdoses a sair do meu canto escuro, que era teu mas que decidiste abandonar. Quando saíste, trancaste a porta.

Vejo o rapaz à minha frente a coçar o braço. A cara com feridas e a roupa descuidada. Decidiu deixar a heroína. Pede-me ajuda com palavras arrastadas, conta-me as suas justificações, as suas desculpas, os seus motivos. Os olhos estão nervosos. Um pouco febris, um pouco vidrados, o braço com marcas. Ele coça-se. Penso em ti, em nós. Imagino-o dormente. Imagino-o como te via, como nós éramos – dormentes. Não interessava o cabelo lavado. Dormentes para a vida. Perdidos. Completamente drogados, seria o termo. Doentes, digo eu agora. Antes de ficarmos desesperados. E dormentes de novo, quando não resistíamos. Coço o meu próprio braço – lembro-me bem da sensação da agulha, lembro-me bem do descanso que trazia. Mas lembro-me, acima de tudo, do que não foi. Salvação. Felicidade. Amor. Não foi. A droga não foi. O rapaz conta-me a sua história e eu prometo ajudar. Dou-lhe a mão e prometo ajudar.

Quando decidi trabalhar com toxicodependentes tive medo de ver-te em todos eles, de ver que só os ia perder como te perdi a ti e de ver a pessoa que não consegui salvar. Enganei-me. Vejo-me a mim. Vejo o potencial e o pedido de ajuda que eu tive de fazer e que tu, cobardemente, não fizeste. Não me quero chatear, tiveste as tuas razões. Mas mataste também parte de mim. Vejo-me a mim quando cheguei ao fundo e decidi que só existia um caminho: para cima. Mas mais que tudo, vejo-os a eles, a eles próprios, à luta individual, difícil e digna que eles escolheram: largar a droga. E digo, a sorrir para cada um deles, “sê feliz”.

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Comments 2
  1. há quem morra todos os dias, há quem morra apenas uma vez.
    gostei de morrer, mas também… de renascer com as tuas palavras.

    D.

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