O “Deus das Pequenas Coisas” de Arundhati Roy

Vencedor do prémio Booker Prize em 1998, O Deus das pequenas coisas conta a história de três gerações de uma família do estado de Kerala, na Índia. O romance decorre nas décadas 60/70 do século XX, perante uma população que incorporou os hábitos dos colonizadores europeus (a música, o cinema, a religião, a forma de vestir…), ao mesmo tempo que conserva a maioria das suas tradições, hábitos e tabus ancestrais, como por exemplo, a marginalização dos intocáveis (aqueles que segundo o sistema de castas – estratos sociais – hindu desempenham as tarefas mais abjetas), tendo, por isso, de manter-se à margem dos “tocáveis” para não correr o risco de os “contaminar.” Tudo isto numa altura em que o Marxismo e o Cristianismo surgem como novidades vindas do continente europeu e se revelam como potenciais derrubadoras das barreiras sociais vividas na Índia. Ainda que tal acontecesse mais a nível teórico.

Belo e comovente, O Deus das pequenas coisas é, em primeiro lugar, uma história de amor, tão comovente e dilacerante como a de Romeu e Julieta. Retrata as diferentes formas de manifestar o amor, numa sociedade cujas barreiras são tantas e tão difíceis de contornar que as coisas mais importantes ficam sempre por dizer. Aqui, só as pequenas coisas são mencionadas, só para elas há espaço. Num ambiente social onde há que obedecer a normas rigorosas acerca de quem deve ser amado, quando e como.

Um romance que engloba uma série de amores proibidos. O de dois gémeos que se amam com uma intensidade que ultrapassa os laços de sangue que os ligam. A avó cuja história de amor tem marcas da violência, ou a tia-avó que esconde a sua paixão pelo Reverendo Mullingham sob capa de severidade e repressão. O tio que não ultrapassa o desamor pela sua musa britânica. No epicentro desta teia de amores condenados encontra-se a mãe dos gémeos (Ammmu) e o seu amor por Velutha, o líder sindicalista intocável. Uma ameaça para esta família indiana, dona de uma fábrica de conservas.

Ammu é duplamente estigmatizada, quer pelo divórcio, quer pela entrega a uma paixão que ameaça pôr em causa a imagem da família perante a sociedade – aliada a um acidente que vitima a prima idolatrada, quando se encontra na companhia dos dois irmãos. Todos estes acontecimentos terão fortes repercussões na vida e na infância dos gémeos.

Com uma linguagem intensa e profunda, Arundhaty Roy faz uso de repetições, utiliza adjectivos que são enriquecidos ao serem incorporados em ousadíssimas sinestesias, metáforas e personificações, como é o caso de “o bambu amarelo chorou”, ou “os cotovelos da noite, repousando na água observaram”. Ao mesmo tempo são dadas pistas com presságios que fazem o leitor adivinhar o que se vai passar a seguir. Em muitos momentos da narrativa, o sentimento crescente de angústia é vivido pelo leitor, tornando-se muitas vezes difícil de suportar.

As pequenas coisas são descritas até ao mais ínfimo pormenor, como que para prolongar ao máximo a durabilidade daqueles momentos preciosos e singulares, porque, sendo proibidos, podem nunca mais se repetir. As personagens agarram-se às pequenas coisas, porque tudo pode mudar um dia.

Então, e se todos nós fizéssemos este exercício de dar importância às pequenas coisas? Se no ano novo que se aproxima, mudarmos de atitude e passarmos a valorizar todos os momentos que vivemos? Se cada um de nós valorizar as pequenas coisas certamente seremos mais felizes, porque são estas pequenas coisas que nos ligam ao amor, à esperança, à infinita alegria. Vivemos num contexto de crise, não só económica, mas, sobretudo, de valores. Que a crise económica traga algo de positivo e que seja o de dar valor às pequenas coisas que nos rodeiam, aos pequenos gestos que, sendo pequenos na sua simplicidade, são grandes na forma como nos chegam ao coração.

Quando questionada sobre quem é este Deus das pequenas coisas, a autora deste romance, Arundhati Roy, respondeu dizendo: “O deus das pequenas coisas é a inversão de Deus. Deus é uma coisa grande e está sempre em controlo. O deus das pequenas coisas pode ser a forma como as crianças vêem as coisas, ou a vida dos insectos nos livros, os peixes, ou as estrelas – é um não-aceitar do que pensamos ser as fronteiras dos adultos.” É sabido que as crianças conseguem ver de uma forma especial o mundo que os rodeia, talvez os adultos devam procurar ser mais genuínos e quanto mais não seja, de vez em quando, voltar ao estado de pureza e inocência de uma criança e permitir-se ver com o coração. O Deus das pequenas coisas é, sem dúvida, um livro recomendado para “todas as pessoas que sabem que amar sem limites tem um preço que as pessoas vulgares não estão dispostas a assumir”.

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