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O Dantas cheira Mal da Boca!

Há cem anos, a 26 de Março de 1915, saiu o primeiro de dois números da mais efémera e, ao mesmo tempo, mais celebrada revista literária do século – a Orpheu. Por esses dias, cinco anos depois da implantação da República, a vida política portuguesa fervilhava de intriga, conspiração e descrédito. Era primeiro-ministro o general Pimenta de Castro, que tinha ensaiado uma deriva ditatorial, dissolvendo o Parlamento para não ser incomodado, com a cumplicidade do presidente da República, Manuel de Arriaga, enquanto Afonso Costa, líder do principal partido no dissolvido Parlamento, conspirava em palacetes, nos arredores de Loures, para derrubar o governo. O que conseguiu antes da saída do segundo número da Orpheu.

Nas letras, dissolvia-se o que restava do espírito crítico, inquieto e revolucionário da Geração de 70 e das Conferências do Casino, de Antero de Quental e Eça de Queirós. Pontificava, então, em meados desta segunda década do novo século, como referência, Júlio Dantas, psiquiatra e autor tão prolífico na escrita, como oportunista e acomodado na política. Os dois únicos números da revista Orpheu são, ainda hoje, passado um século, uma referência. Isso deve-se ao facto de ter ultrapassado, em muito, a procura de afirmação de uma nova corrente literária e estética e, no contexto da época, constituiu-se com um símbolo de uma ruptura radical com a pasmaceira, o comodismo, o salamaleque, a mediocridade, a reverência e a decadência. Num país onde a reverência cabisbaixa, a coluna dobrada e o conformismo se instalaram e são o quotidiano que atravessa gerações e gerações, décadas e décadas, a atitude revolucionária da geração de Fernando Pessoa, Mário de Sá- Carneiro e Almada Negreiros indignou (e assustou) a aldeia que, mais ou menos como hoje, de cartola ou chapéu de coco, circulavam entre o Chiado, o Parlamento e as redacções dos jornais, a dizer à populaça: “tenham paciência”.

É com a mesma irreverência e atitude de ruptura que no mesmo ano, em 1915, José de Almada Negreiros publica o Manifesto Anti-Dantas. Júlio Dantas era, na época, o expoente máximo da fina-flor literária, social e política. Oportunista até à medula, com uma insaciável sede de poder – um mentor dos actuais governantes que não se demitem, aconteça o que acontecer – o autor da Ceia dos Cardeais é, acima de tudo, uma enguia que passa, sem coluna vertebral, por deputado às Cortes, na monarquia, por ministro na I República e por convidado de Salazar para dirigir a Exposição do Mundo Português e para embaixador especial da ditadura no Brasil. Até Marcelo Caetano escreveu: “O Dr. Dantas, homem de letras, fora ministro em vários governos da 1ª República, mas aceitara depois de 1928 colaborar com Salazar”. O jovem Almada Negreiros teve o mérito (muito antes de conhecer todo o seu percurso) e independentemente dos méritos literários de Júlio Dantas, assinalados por Vitorino Nemésio e David Mourão Ferreira, de reduzir um símbolo do poder e do oportunismo político a um colorido e insignificante: “O DANTAS CHEIRA MAL DA BOCA”.

A revista Orpheu e o Manifesto Anti-Dantas ainda hoje, decorrido um século, são referências no nosso imaginário de rebeldia, irreverência e desassossego. São um oásis no deserto de passividade que nos marca. Hoje, quando vivemos um período de acelerada decadência política, cultural, social e ética, poucos se atrevem a dizer, preto no branco e em maiúsculas, que grande parte de quem nos governa cheira mal da boca e, muito menos, dizer que uma geração que por esta gente se deixa representar é uma geração de indigentes, de indignos e de cegos.

Morra o Dantas! Morra! Pim.

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