Desde 1910 que Portugal, após centenas de anos de monarquia, se tornou numa república, num processo que custou a vida ao último rei e o seu herdeiro, e a uns quantos revolucionários.
Tal como na revolução de abril, a republicana não foi como a revolução francesa, um esforço de massas, meia dúzia de pessoas fartaram-se do estado das coisas, avançaram para a luta e o povo aderiu depois, em ambos os casos muito graças à forma semi-pacífica com que as coisas se passaram.
Somos assim, complacentes. Se é para ser seja, aceitamos os nossos destinos porque temos medo de tudo, temos mais que fazer, o autocarro para apanhar ou médico às 5 da tarde. E nesta complacência, 113 anos e dois dias depois da instauração da república, aceitámos durante um dia ser uma monarquia outra vez, prestando vassalagem a um casamento dito real.
Há muitos países europeus em que a monarquia convive alegremente com a democracia, como os nossos vizinhos espanhóis, os nossos aliados britânicos ou alguns dos países nórdicos, mas cá não é o caso.
Não tenho nada contra. Sou descendente de condes e já vivi em Espanha, até em melhores condições que consigo viver aqui, com a república neste estado deplorável que tem caracterizado os últimos anos
Porém, a nossa primeira figura de estado é um presidente da república portuguesa, eleito da forma mais democrática que conhecemos por todos os que o quiserem eleger.
Os casamentos reais existem nos países onde há monarquia, se não o somos, porque temos anúncios a exaltá-lo como tal, coberturas televisivas e altas figuras do estado, incluindo o presidente Marcelo, a participar na cerimónia?
Claro que todos eles são pessoas como as outras e até admito que tenham uma vida pessoal separada da ‘profissional’, mas se o evento foi público, não foi certamente essa a mensagem que passaram.
Ao marcar presença num evento que se assume como monárquico, no país republicano que representam, não estarão a assumir eles próprios que o país que governam é no mínimo, ambíguo?
Não escrevo esta crónica com qualquer rancor porque me divirto imenso com todas as contradições de que somos feitos, mas credo, a ‘princesa’ até coroa tinha.
Claro que é válido brincar à monarquia. Conquistámos a nossa liberdade há 49 anos e podemos viver num T1 para uma família de quatro na Ameixoeira e ostentar um anel com um brasão que confirma que somos condes de Odivelas ou duques de Freixo de Espada Acima, ou marqueses da Costa da Caparica, mas, por respeito às instituições, parece-me estranho que um representante republicano, que assumiu um compromisso com uma constituição republicana, participe na brincadeira.
Não temos rei, rainha, príncipes ou princesas, duques, condes ou marqueses. Duarte Pio João Miguel Gabriel Rafael é tão dom ou duque como o senhor do Bangladesh naturalizado português da mercearia à frente da minha casa. Não temos monarcas nem trono para herdar, não temos feudos nem nobres ou vassalos para serem governados por reis, príncipes ou princesas.
Insisto, casem como quiserem, tratem-se por majestade onde quiserem, tenham os pajens que quiserem, ostentem os títulos para comer à borla nos restaurantes que quiserem, pavoneiem-se pelas revistas cor-de-rosa que quiserem. Contudo, ter o principal meio de comunicação social, a TV, a dar tempo de antena a um casamento de cidadãos comuns, e o Presidente da República, enfatizo, República, a prestar-lhes vassalagem é no mínimo caricato.
Podemos argumentar que como democracia que somos, existe pelo menos um partido monárquico que se chegasse ao poder, o que é tão provável como a minha mãe ser campeã do mundo de fórmula 1, gostaria de reinstaurar o sistema político que defende, mas no dia 7 de Outubro de 2023 isso não era o caso.
No dia 5 de outubro, o país parou para celebrar a Instauração da República, dois dias depois, à monarquia.
Que bom é viver num país com gentes esclarecidas e de bom-tom, que sabem perfeitamente o que querem.
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Comments
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Olá, João!
Frio, cru e verdadeiro!
Assim se serve um excelente texto.
Acrescentaria algo se algo houvesse para acrescentar.
Aplaudo e felicito pela fabulosa captação da nossa (sociedade portuguesa) verdade.