– Que trazes tu aí contigo, Lídio?
– Um cravo.
– Por conta das comemorações do 25 de Abril, não é?
– É. Carmo, é data que me enche o coração comemorar.
– Nada há de melhor que a liberdade.
– Que todos nós possamos ser livres para tomar as rédeas de nossa própria vida.
– Bem verdade, Lídio.
– O que vais querer?
– Um galão e meia torrada.
– Ou não fosse isso o belo do pequeno-almoço português.
– Verdade Lídio. Por mais liberdade que tenha é nele que vou bater, meu abençoado aconchego de bucho.
– Olha, olha Carmo… quem vem lá!
– E vem de cravo em punho como tu.
– Aquela? Ui! A quarentona solteirona.
– Não tem filhos, pois não?!
– Isso, filhos! Gosta é desta vida de passeio. Anda sempre com a outra divorciada, a que tem dois filhos. Cada um a um pai pertence, não são filhos do mesmo.
– Ó Lídio, a quarentona não tem um cargo qualquer importante numa empresa?
– Acho que tem sim. Às vezes vejo-as aí na noite, o grupo das divorciadas e das que ninguém quis para parir.
– Já viste Lídio, chegar a esta idade e nem ter conseguido construir família?
– Pois é, coitadas.
– Se bem que coitados somos todos.
– Mas Carmo, elas mais.
– Ai Lídio, lá isso são!
– Um galão e uma meia torrada, é para?
– É para mim! Desculpe, tenho aqui o cravo em cima da mesa a estorvá-lo.
– Ora essa, é sempre um gosto tê-lo por cá. E viva o 25 de Abril para que aqui possamos estar conversando.
– E logo eu que gosto tanto desta data. Viva! Viva a liberdade!
Pena que a conversa ocorrida se tenha ali encerrado, entre duas pessoas, um galão e meia torrada. Tinha Esmeralda, a quarentona, gostado de envergar o seu cravo naquele modesto pequeno-almoço de estéreis dizeres, mais estéreis que aquilo que dela julgam. Tanto perscrutaram e nenhum comentário foi o certo, lamentáveis raciocínios. Lhes diria que os peixes mortos que da boca lhes saem, por conta das ocas associações, estão já decompostos pela ausência de sentido. Continuam-se a colher os cravos das mesmas sementes de 74. Já se pode falar, um bem-haja a isto, não se aprendeu ainda a cuidar o que se fala. Haverá de outra revolução ser precisa e, nesta, dirá Esmeralda que foi seu ímpeto conhecer o mundo, de parte a parte, descobrindo-se a si e sem que nele se visse obrigada a deixar o seu “rasto uterino”, dizer que lhe ficou na memória do mais desassossegante dos livros que já leu. Dirá que espalhou o seu amor maternal por tantos quantos cruzaram o seu caminho. Egoísmo é guardar amor ou reservá-lo apenas para o que sai de nosso ventre. Parir amor é o mais difícil dos partos. Parir amor descomprometido, de quem não necessita de títulos que o comprovem, está ao alcance de poucos, “bendito é o fruto do vosso ventre: AMOR”. Fosse a reza esta para nos sabermos do mundo e não uns dos outros. Dirá Esmeralda que, nessa descoberta de si, tanto construiu que não sentiu apelo à óbvia procriação, imposição social, função primordial da mulher, claro está. Função atribuída em época que, outras funções, não interessava que tivessem as mulheres. Mudaram-se as funções, manteve-se o resto. Há cousas que tardam mais que o suposto.
Ai, e a amiga divorciada? Se deste pequeno-almoço português tivesse participado…. lhes explicaria que o trágico momento não foi o dia em que se separou, foram os momentos antecedentes, os que se perdeu nos afazeres de nada, na passagem subtil de brilho a pó. Era trabalhar por conta de outrem sem salário afectivo. Pois que, quando assim é, se cesse o contrato ou os, sejam lá quantos forem, que há patrões que nos devemos nós livrar. Foi encontrar-se. Juntou aos dois filhos um novo amor: o do recomeço. E é aqui que devemos estar, onde houver amor. Bendito é o fruto do vosso ventre: AMOR.
Diriam elas tudo isto ou não diriam nada, que nada há que esclarecer. E que floresçam cravos da diferença, das opções, da liberdade de ser o que houver para se ser. Mal não fará se o galão passar a chá de sonhos e a meia torrada a queijada de sorrisos.