Marcelo Rebelo de Sousa ganhou a eleição. Indiscutivelmente. Com mais 30% de votos do que o seu principal oponente, Sampaio da Nóvoa, esclareceu-se qualquer dúvida que pudesse existir. Contudo, as presidenciais não são as eleições que fazem o país vibrar, nem, muito menos, uma segunda volta das legislativas, como muitos queriam que fossem. E porquê? Porque a sua relevância não se aproxima da das legislativas. Aliás, a importância desta eleição, a presidencial, é demonstrada pela participação popular: mais de metade dos cidadãos eleitores não votou.
Será um problema de cidadania? Será que o problema reside na (classe) política? Ou será um problema do cargo em questão?
Vamos aos factos. O Presidente, no actual quadro institucional, não tem poderes que a sociedade em geral considere substanciais. O Presidente não governa. Este facto é suficiente para que a maior parte das pessoas desvalorize o cargo e, lá está, o respectivo acto eleitoral.
Sempre tentei dissuadir os que usavam este argumento. Até ao dia em que me confrontaram com uma boa questão: porquê votar para um cargo que não tem programa eleitoral? Vamos votar num conjunto de boas vontades só verbalizadas? Esta foi mesmo uma boa pergunta. À qual não soube responder. A partir desse mesmo momento, comecei a questionar a utilidade da presidência da República, num país em que o poder executivo está, quase todo, nas mãos do Conselho de Ministros e do seu líder, o Primeiro-Ministro.
Esvaziado de poderes pelas sucessivas revisões constitucionais, o Presidente da República tem, ainda, um conjunto de competências que, apesar de não o tornarem na figura providencial do Estado (encarnada pelo Primeiro-Ministro), tornam-no “Provedor do Cidadão”, “árbitro do sistema”, garante do “regular funcionamento dos órgãos de soberania”.
A eleição de domingo designou aquele que, com ou mais ou menos arte, irá desempenhar as funções de moderador do sistema político. Talvez por causa disso é que tenhamos visto os principais concorrentes ao cargo a apostarem numa postura conciliatória, dialogante, estável, paciente, características que, curiosamente, o chefe de Estado cessante foi perdendo ao longo dos dez (longos) anos de mandato.
É neste ambiente de parlamentarização do sistema político, consequência da perda significativa de relevância institucional do presidente da República, que residem os grandes desafios do Presidente recém-eleito. Voltar a dar dignidade à mais alta figura do Estado é imperativo.
Marcelo prometeu, durante a campanha, usar os poderes presidenciais com cautela, não imiscuindo-se na acção dos outros órgãos constitucionais. A promessa de manutenção do actual governo em funções durante a legislatura foi outra das promessas. Talvez seja por isso que António Costa, aquando da felicitação pública ao recém-eleito Presidente, se tenha apresentado com um rasgado sorriso.
Poderemos então depreender que certos poderes conferidos pela Constituição ao Presidente, como o uso da ‘bomba atómica’ (dissolução do Parlamento), a demissão do Governo e, numa interpretação mais lata, o recurso preventivo ao Tribunal Constitucional e o veto político de decretos que cheguem da Assembleia para promulgação poderão ser só exercidos em casos excepcionais.
Como vimos, para além dos poderes, há forma de os exercer. Todos os cargos políticos são personalizáveis. O de presidente então, nem se fala. Desde 1976, todos têm dado um cunho próprio à sua forma de exercer o cargo. Ramalho Eanes foi o que esteve mais próximo do presidencialismo, dentro do que a Constituição permitia na altura (basicamente nomeando e demitindo Governos de livre e espontânea vontade). No sentido oposto, Marcelo será, na minha opinião, o presidente que tornará, ainda que não seja de jure, o regime parlamentarista.
Em Portugal, a tradição em democracia tem sido a de prevalência do Parlamento sobre o Presidente. Em 1911, altura em que o cargo é formalmente introduzido, o parlamentarismo republicano (que fazia lembrar os tempos da monarquia) é o sistema escolhido. Em 1976, o semi-presidencialismo francês é a inspiração. Contudo, cedo se percebeu que o sistema de coabitação tinha de ser reformado: ou dava-se mais poderes ao presidente e o sistema ficava presidencialista ou parlamentarizava-se mais um pouco. A segunda opção prevaleceu na revisão constitucional de 1982.
Numa perspectiva histórica, podemos afirmar que, em termos gerais, a figura do Presidente foi desenhada à imagem do que era o Rei nos tempos da monarquia. A presidência da República, especialmente nos dias de hoje, é, infelizmente, o reflexo da tradição nobiliárquica/monárquica em que o chefe de Estado exerce, sobretudo, funções cerimoniais. O dia 10 de Junho é o clímax das manifestações monárquicas; é o dia em que a atribuição (infinita) de condecorações faz lembrar uma célebre expressão cunhada por Almeida Garrett sobre a distribuição de títulos nobiliárquicos no reinado de D. Maria II: “Foge cão que te fazem barão. Para onde se me fazem visconde?”
Por isso, deixo uma questão para reflectirmos. Visto que a presidência da República se tem esvaziado a si própria e tem sido esvaziada por outros órgãos, em termos de relevância política, não será altura de se iniciar uma discussão pública que leve a uma revisão constitucional que elimine do quadro institucional um cargo estatal inútil, dispendioso (14 milhões de euros anuais), muitas vezes obstáculo ao bom funcionamento das outras instituições e, essencialmente, um prémio de carreira para ‘os notáveis’ da República?
Se há cortes a fazer-se na estrutura do Estado que se comece pelo topo da pirâmide.