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Nem só de pão vive o homem…

Dizem que os cães adquirem, com o tempo, as características dos donos. Há até quem se tenha dado ao trabalho de os fotografar lado a lado, de forma caricatural, para que se evidencie as semelhanças, como o tipo de pêlo/cabelo, ou a expressão. Mas o que me pergunto é se o contrário não acontecerá também, se os donos, por força do convívio diário, não adquirem características dos animais de companhia.

Isto ocorreu-me ao olhar para eles. Ele, um homem que deverá rondar os 40 anos, e o seu cachorro, de 4 ou 5 meses, chegam ali diariamente. Sem parcimónia, fruto talvez dum regresso às necessidades básicas a ser cumpridas, estende aquilo que pouco mais é do que um pano, que lhe serve de esteira, deita-se de lado e, aninhado nele, o pequenote. Tem sido assim todos os dias pela hora de almoço, e aí permanece até ao fim da tarde.

É impossível não dar por eles. Ali, numa arcada onde passam dezenas de pessoas dos escritórios próximos, ou outras tantas dezenas de frequentadores da esplanada ao virar da esquina, são já elemento costumeiro.

Aos poucos, na dúvida entre a intromissão e curiosidade, os anónimos vão-lhe dirigindo algumas palavras. O cão é por certo um elemento facilitador, de uma amorosidade imensa e olhar traquino, dando facilmente a barriga às festas.

Aos poucos, as pessoas vão-lhe trazendo coisas. Primeiro foi uma tenda. Está montada numa zona de sol, e é nela que dormita pela noite, mas de dia opta por dormir na arcada. A noite é insegura, e o sono vespertino num local de passagem frequente permite-lhe descansar mais profundamente, sem receio duma abordagem furtiva, para além de usufruir da sombra em dias de calor. A noite, essa, fá-lo ser mais vigilante.

Algumas pessoas vão trazendo fruta ou bolachas, às vezes uma sandes. O cão não foi esquecido e alguém trouxe patés, mais tarde uma coleira e uma trela. Alguns transeuntes abordam-no.

Muitas vezes passei por ele e os mirei, dormindo ambos, abraçados. Do meu lugar favorecido na esplanada, não sem alguma culpa, pergunto-me ao que chegámos, estarmos umas quantas pessoas a comer e a beber, ou simplesmente a conversar e a apanhar sol, enquanto a meia dúzia de metros estão eles, deitados no chão. Habituámo-nos à miséria e como é isso possível?

Vejo que alguém chega e deposita junto deles um saco em que adivinho comida, sem que ele desse conta, dormindo profundamente. Apenas o cachorro levantou a cabeça e logo se aninhou no dono voltando a dormir.

Pouco depois  o homem acorda  e senta-se na esteira, brincando com o crianço. O olhar de ambos é igual. É um olhar de profundo amor. Aproximo-me, não sem me sentir intrusa, mas sem conseguir conter o ímpeto e falo-lhe no cão, que é uma graça. Um pouco sem jeito, a meter conversa, é mais fácil falar de algo que não dele próprio.

É de uma educação extrema. Responde a tudo, calmamente. Enquanto o abordo, pergunto-me se tenho esse direito, de lhe perguntar o que quer que seja. Porque não tenho solução para ele, não poderei dar-lhe emprego ou casa, como não poderá o comum dos mortais, e não sei se é justo questioná-lo apenas porque estou a tentar perceber a sua situação.

Ele não parece achar que o meu contacto, como terá acontecido com as outras pessoas, seja uma inconveniência. Conta que o cachorro o abraça noite fora e partilha comigo onde o foi buscar. Dentro dum saco antevejo um desparasitante, diz-me que foi atendido por um veterinário que percebendo a sua situação, lhe ofereceu a consulta básica. Fico feliz por ainda haver quem o faça, apercebendo-se da sua incapacidade financeira. Antecipando a pergunta que não fiz, como se a adivinhasse, diz-me que qualquer que seja a solução para a vida dele, terá necessariamente que incluir o canídeo.

Pergunto-lhe pela roupa, que muda de quando em vez, e pela higiene. Fala-me dos banhos públicos. “Oriento-me”, diz ele. Se o questionamos face a uma solução futura, refere um familiar, talvez seja uma saída… “vamos ver, vamos ver”. No entanto, se, enquanto fala no cachorro, o seu olhar sorri, quando fala dele próprio as palavras surgem espaçadas, os olhos lacrimejam, e deixa de nos olhar nos olhos, procurando antes uma perspectiva lateral, como a concentrar-se na sua história que prefere manter em meias palavras.

Quanto à comida, refere que há uma associação que passa por ali à noite. Não sem pesar, revela que se não estiver na tenda, onde habitualmente deixam a comida, um dos outros sem-abrigo rouba-lhe a comida. Na miséria, também há desunião. Duplamente triste e revoltante.

Não me sai da cabeça que qualquer um de nós pode amenizar-lhe o dia, com algo que se coma ou com outro tipo de ajuda, mas não mais do que isso. Fico também a pensar que os centros de abrigo não aceitam cães e temo por esse amor que os une. Ocorre-me que tudo o que penso termina na incerteza das reticências…

Não lhe sei a história, mas refere um emprego que teve. Fico a pensar que facilmente o desprovimento pode acontecer a qualquer um, faltando-lhe o emprego, a saúde, ou alguém que sirva de apoio.

Digo-lhe “até amanhã” porque conto vê-lo naquele local como habitualmente. Volta a deitar-se, a cabeça sobre um saco, o pequenote ao lado dele, cara e focinho alinhados, partilhando uma mesma história.

Num último olhar, vejo um livro que lhe sai dum saco, Lobo Antunes, O Arquipélago da Insónia.

“Nem só de pão vive o homem…”

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