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Memórias fragmentadas, parte III

Matias subjugou-se à sua pesquisa. Começava a odiar-se por não conseguir saber quem é a mulher de cabelo negro das velhas  fotografias que encontrou na velha casa que a que jamais regressou. As da mulher que desconhecia junto às da sua mãe, familiares e outros poucos incógnitos.

Desperdiçou horas a ir ao encontro de antigos amigos, pessoas de família, as pessoas que já não o olhavam com amor. Matias havia-se perdido para a sua família. Muito eles procuraram revelar caminhos alternativos que tirassem Matias do seu melancólico quotidiano. Tanto insistiram que o viram afastar-se e aos poucos a tornar-se um desconhecido. Primos, tios, sobrinhos todos lhe presentearam com um “não sei” monocórdico marcado por um desdém movido a compaixão. Seu pai, vazio de vida, fragilizado nos ossos, tinha marcadas na pele todas as memórias de uma vida demasiado longa. Incapaz de o ajudar , incapaz de lhe responder, incapaz de ser humano. Matias largou uma lágrima em memória de seu pai. Ao vê-lo cheirou a morte. Tocou-lhe as rugas da testa com um beijo de ternura que julgava esquecida e ouviu um último clamor, “a casa”, sussurrou baixinho o seu pai.

A casa. A palavra que deixou Matias a pensar, não no significado mas na casa. A casa onde morrera a sua mãe e a que nunca mais regressara, a casa onde viu a morte que a levou, onde cheirou o sangue, onde encontrou a foto daquela mulher de cabelo negro.

Ao chegar perguntou-se que respostas poderia retirar daquele sítio. Sentia estar à procura de uma agulha num palheiro. Pensava quem poderia ser aquela mulher. E perguntava-se que poderia ela saber da morte da sua mãe. Valeria a pena? Valeria a pena forçar uma fechadura apodrecida por anos de abandono e esquecimento? A casa era uma ruína. A porta escondia o vazio, as paredes de onde retirou as molduras eram fracos muros que seguravam o céu. As escadas que em pequeno subiu para encontrar a morte estavam reduzidas a fragmentos de memórias, cada degrau uma memória perdida na vastidão do subconsciente de Matias. Cada passo que ousou colocar na madeira devolveu-lhe uma imagem. Cada imagem era uma foto do passado em cores do presente. Sentia-se inebriado por o que estava a ver de olhos fechados, o frio no rosto, as portas no cimo das escadas, o quarto, a sua mãe, a pistola que empunhava na sua mão curiosa, o gesto que toldou a sua vida, o disparo acidental, a seca explosão metálica, o vermelho escarlate do sangue ainda quente, a arma jazida a fumegar ao lado da cabeça tombada do amor da sua vida. Depois o seu pai sobressaltado a descobri-lo aninhado num canto envolto em tragédia, coberto pelo medo, a dor tatuada no olhar vazio que nunca mais perdeu.

Um estrondo, o chão sucumbiu sob o peso da idade e de Matias e atirou-o para o piso de baixo. Libertou-se de pedaços de madeira e de pó, cacos da casa quebrada. Com o que encontrou e cabia na mão, derrubou o que conseguiu daquela casa até a deixar num monte de escombros. A casa deixou de existir mas as memórias que carregavam a sua dor ainda sobreviviam. Retirou do bolso das calças as cinco fotos de uma casa que foi feliz em tempos idos. O telhado negro e as paredes limpas já não eram uma mulher imaginada por Matias. Aquelas fotografias eram puzzles do sofrimento vivido dentro de si durante quase toda a sua vida. As peças do puzzle eram as suas memórias fragmentadas, estilhaçadas pelo horror de um gesto que cometeu e se esqueceu no segundo seguinte, amordaçado e apagado pelo choque de roubar a vida ao corpo da sua própria mãe.

Regressou para nunca mais voltar àquele local. Recordava agora o que aconteceu, sabia por fim a verdade que esteva escondida dentro de si. E surgiu o alívio. Durante anos estigmatizou-se à dor da uma perda que não compreendia. Agora libertara-se. A culpa foi a dor que carregou até deixar nesse mesmo dia uma flor na campa da sua mãe. Baixou-se e devagar sussurrou: “perdoa-me mãe, tirei-te a vida e a minha num só segundo. Agora vou vive-la pelos dois. Amo-te”.

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