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Luísa

Não era preciso o toque do despertador. Maquinalmente, todos os dias, os olhos abriam-se muito antes daquele apito irritante e perturbador. Mas sabia-lhe bem ficar mais um pouco na cama, quente ou não, mas suave que lembrava o mundo dos sonhos, recentemente abandonado.

O resto era rotina: levantar, tomar banho, despachar para o trabalho. Tudo era realizado como se o corpo já soubesse o que fazer. Simples gestos eram efectuados rotineiros e nem havia motivo para pensar. A prática conduz à perfeição e assim era a sua forma de estar,

Depois do banho ainda havia o ritual do pequeno-almoço, que era preparado de véspera, de modo a nada falhar. Tudo tinha um lugar certo, uma marca própria que não se desviava. A mesa era como um laboratório onde tudo tinha lugar certo e correcto. A caneca não chocava com o prato nem o talher com o tom do guardanapo.

Todos os dias tinham regras, alimentos que não se misturavam, mas que se acompanhavam, numa manifestação silenciosa que terminaria, invariavelmente, no lado oposto da mesa, olhando directamente para a máquina. Nada se perdia naquela casa e o espaço estava estudado ao pormenor. Pouco esforço para a máxima rentabilidade.

Não era só o pequeno almoço que era planeado. Também as indumentárias estavam destinadas a ter dias certos. As cores específicas marcavam as prioridades diárias, começando no branco, a segunda-feira neutra. Teria de haver sempre uma peça de roupa branca, no início da semana e funcionava como amuleto.

Não saberia viver de outro modo. Tinha-se anulado em termos emocionais e só lhe importava a parte profissional. Era a que se via e nada lhe poderia ser apontado. A luta duma vida tem de receber louros e alguma coisa lhe tinha ficado: o trabalho. Não que lhe desse total satisfação, mas servia para colmatar as falhas de outros sectores que se tinham apagado da sua vida.

Segunda-feira era dia do neutro, de não ser notada, mas de ser ouvida. Ao menos sabia que a sua voz chegava a algum lado. Todos aqueles anos não seriam em vão. Sabia que era, de certa forma, invejada, mas isso não a envaidecia. Antes pelo contrário. Se a soubessem ler teriam percebido como estava oca e tão perdida que nenhuma cor a conseguiria preencher.

As malas e os sapatos eram meros acessórios que até pareciam conversar entre si, mas não podiam ser fortes pois tudo tinha de funcionar numa perfeita harmonia. Essa era a palavra que usava com frequência e que buscava dentro de si. Estava à deriva, mas quem a olhava via alguém cujas velas se orientavam com segurança e firmeza.

As vidas são mesmo pequenos castelos de cartas que podem desabar a qualquer momento e sem motivo aparente. Nunca lhe tinham visto um olhar arrogante nem uma palavra menos certa. Tinha o condão de as saber usar com mestria e no tempo certo. Tudo corria bem para os outros. Era o seu mote.

Assim era Luísa, todos os dias, sem um pingo de emoção. Uma estátua que se mantinha intacta e sempre perfeita. Contudo, esta era apenas uma parte da sua vida, a que lhe permitia que pudesse ter as outras, as que lhe davam imenso prazer. Essas eram as especiais, onde os animais e o teatro eram a força de viver.

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