Longe do Ouvido, Perto do Coração

Comentário ao Relatório Dar Voz ao Silêncio

Nas últimas semanas muita da atenção da sociedade portuguesa tem estado virada para o Relatório Dar Voz ao Silêncio, documento final apresentado pela Comissão independente para o Estudo dos Abusos Sexuais na Igreja Católica, após entrevistadas as vítimas de abuso que reuniram coragem para partilharem a sua história, e analisado o conjunto destas histórias.

Muita tinta, e não só, tem corrido desde que este relatório veio a público e que ainda antes de existir já era delicado, como delicados são os temas Igreja Católica, religião, abuso sexual e, por vezes, saúde mental. Neste comentário, pretendo apenas focar-me em duas importantes constatações que este relatório também nos traz à lembrança ou ao conhecimento. A primeira a de que “longe da vista” não significa necessariamente “longe do coração”, sobretudo, quando estamos a falar de sofrimento psicológico e desrespeito pelo que de mais importante existe em nós: a dignidade. A segunda é que de doença psiquiátrica/psicológica, dificuldades na regulação dos impulsos, violência, trauma, entre outros, ninguém está livre, independentemente do seu credo, e não podemos contar apenas com a ajuda de Deus.

Este relatório fez-nos parar e refletir na coragem que terão tido as vítimas para falarem perante o escrutínio associado a uma Instituição inigualável, com a qual estabeleceram primeiramente um poderoso vínculo e, posteriormente, uma marcada rutura. Clara ficou também na sua enorme dor calada pelo julgamento instigado tantas vezes por si próprios, e por aqueles que eram muitas vezes os únicos com quem “podiam contar”.

No fundo, não falo da Igreja, já que esta não é representada apenas por aqueles que fazem do relatório Dar Voz ao Silêncio um documento e um retrato da realidade chocantes. Falo sobre a incontornável verdade de que o sofrimento pode estar em qualquer lugar e acomodar-se ainda mais facilmente em sistemas que representam autoridade, acolhimento, única alternativa, sobretudo se eles se caracterizarem por terem limites e fronteiras que são rígidas e fechadas, tornando-as mais distantes dos contextos sociais envolventes. É assim, com as empresas, as famílias e, podemos concluir, com a Igreja. O isolamento e a impermeabilidade dos limites dos sistemas impedem a compreensão de dinâmicas abusivas, a construção de alternativas, o sentimento de apoio e de acolhimento e até a possibilidade de sentir esperança. E quem diz sentir esperança, diz também pedir ajuda.

E é falando de esperança, esse sim, um grande fator de proteção da saúde mental e que muito jeito nos tem dado nestes tempos atuais, que gostaria de terminar: com a minha mais humilde admiração por todos aqueles que parecem ter continuado a ter crença na esperança e a ir buscá-la na coragem de partilharem os horrores das suas experiências de vida com os outros. Que sejamos como eles e não fechemos os olhos, acocorados no nosso próprio sistema fechado, a uma realidade que nos pertence a todos e que não podemos, de facto, deixar longe do nosso coração, sob pena de continuarmos a ser tão intolerantes e apenas consentirmos o intolerável.

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Comments 3
  1. Querida Diana,
    Muitos parabéns por este artigo.
    Adorei. É muito claro.
    Um grande abraço!
    Continua, é muito boa a tua escrita!
    Grata!
    Margarida Marmelo.

  2. É bem verdade que ninguém está livre de doença psicológica/psiquiátrica, ou dificuldade na regulação dos seus impulsos, independente das suas crenças religiosas ou heranças culturais.
    Mas outra coisa é não perceber que esses impulsos não podem nunca ser postos em prática, violando a liberdade e marcando para sempre a dignidade de quem é vítima desses impulsos não calculados, e protegidos por essa tal impermeabilidade típica dos sistemas de poder, que já vem de há muitas centenas de anos atrás.
    É difícil ter esperança , mas o caminho é furar essa impermeabilidade, e cabe a cada um de nós ensinar as nossas crianças e jovens que, ninguém, seja ele quem for e o lugar que ocupa na sociedade , seja ele padre, tutor , médico , professor.. , tem o direito de invadir os limites do seu espaço físico e íntimo , e que ao primeiro sinal de que isso possa acontecer, devem de imediato denunciar e contar o que aconteceu.

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