Já não tenho nada da cidade. Deixou de ser minha. É agora de outros, dos que nem a souberam conquistar, mas que a receberam de bandeja. Não a sabem como cuidar nem lhe conhecem os sonhos nem desejos e muito menos o que a incomoda. Olho para aquelas ruas e sinto que os meus passos já não soam como antes. As paredes não ouvem nada do que aconteceu nem contam o que se passou. Há janelas que escondem cortinas e sabem tudo, mas não querem saber. Tudo se tem perdido no tempo e a tristeza assiste de camarote.
Oiço os meus passos na calçada. Ecoam como pingos de chuva que caem descompassados e sentem o frio do chão. Há choros que se soltam e derramam a dor em manchas pisadas com raiva e fúria; os vidros embaciados escondem vidas que rolam e que se mecanizam. Onde anda a vida que sempre existiu? Que é feito dos dias longos e quentes quando a juventude sabia a tanto e nada mais importava?
Onde estão todos os que fizeram desta cidade um parque de jogos e sonhos? A vida chamou e cada um seguiu o rumo que tinha mais força. Não houve um único que tivesse ficado e as saudades ou dor, nem tiveram lugar para existir. Tudo se tornou tão exigente que o tempo para pensar secou. Foi-se, num ápice, a vida simples e fácil. Agora as apoplexias são diárias.
Desço a rua. Reparo numa luz que parece colorida. Chama-me como se fosse uma sereia com o seu canto enfeitiçado. Não resisto e aproximo-me. É uma cozinha que crepita como um carrossel. Uma mulher velha, de carrapito frouxo e de bata de cor indefinida, ciranda com passos pequenos e certeiros. Há vapor que circula no ar, qual fantasma brincalhão entretido a fazer desenhos sem imaginação.
Quem será? Há muito tempo morava ali uma senhora que dava dois dedos de conversa a quem passava e fazia festas aos gatos. Tinha o parapeito pintado de azul e tigelas de água coloridas para atrair os bichanos. Agora as tábuas da janela estão pintadas de verde, tal como as restantes. Perdeu-se a diferença e o cuidado. A senhora certamente que não existe. Terá partido de vez e a rua perde a sua frescura.
Vagueio e não encontro a cidade do poeta, aquela que tinha bairros modernos a convidarem a ser invejados e muito menos se encontra a faina e a azáfama do fim da jorna. Contudo o fim do dia inspira-me e continua a despertar um desejo absurdo de continuar. Perdi a minha cidade que agora é habitada por outsiders sem ligação à terra mãe. Em cada esquina já não há um amigo, mas, sim, um desconhecido e alguns são pouco amigáveis. Sinto alguma tristeza. Não vejo evolução e sinto-me como o Carlos da Maia, no seu regresso, dez anos depois.
A minha cidade já não é minha. Perdia-a num tempo que nem eu sei. As pedras que calco ainda devem ter resquícios do que aqui se passou, mas a memória já secou e nada reteve. Cesário teria morrido de desgosto e Eça de tédio. Lisboa não se modernizou, abastardou-se. Ao querer ser moderna, deixou fugir o que de fresco e pitoresco tinha, para deixar entrar, de modo bem descarado, o estrangeirismo bacoco.