Leme, de Madalena Sá Fernandes, é um mergulho no esconso da alma
Regressar ao passado para explicar o presente e construir o futuro.
”No seu funeral, a ex-mulher dele, a última, abraçou a minha mãe, a penúltima. As duas choravam muito. Ela disse-lhe ao ouvido: «Era um filho da puta.»”
É assim que começa o primeiro livro de Madalena Sá Fernandes, Leme, publicado pela Companhia das Letras, em março de 2023, uma das obras candidatas ao Prémio Livreiros Bertrand para Autores Lusófonos.
A narradora viaja até à sua infância e adolescência para relatar episódios fragmentados, vivenciados durante os doze anos em que coabitou com o companheiro da mãe, um agressor físico e psicológico, e o impacto no corpo e na alma das duas mulheres.
A leitura é rápida, porque os capítulos são muito curtos, num registo de escrita seco, incisivo, sem poesia, quase sem emoção, como se a autora-narradora quisesse distanciar-se da história, logo de si. A aparente pouca profundidade deve-se ao facto de a protagonista não contar a história da sua vida, mas a sua história de vida com o padrasto. É ele o foco das memórias que se alongam no tempo e no espaço.
Uma autobiografia ficcionada cheia de metáforas. O título refere-se a este homem, que orientou a vida desta mulher, durante muitos anos. Mas o leme também é ela, uma criatura pequena e frágil, navegando em mar alto, por entre a tempestade. Ela, o homem do leme, que enfrenta o mostrengo Adamastor. Há, também, as caixas que a acompanham e os objetos que se tiram lá de dentro, memórias, local de abrigo.
O enredo, praticamente inexistente, é substituído pela ambiguidade das relações entre as personagens: o casal, mãe e filha, enteada e padrasto. Entre todos perpassa o ódio e o amor, a raiva e a compreensão, a cumplicidade e a distância. A emoção da história plasma-se, sobretudo, na ambivalência de sentimentos da narradora pelo padrasto. Embora ela tenha medo da noite, que traz a imprevisibilidade, da força dele, dos urros que se soltavam do seu corpo, na madrugada, orgulhava-se e enternecia-se por ele lhe forrar os livros, sem deixar bolhas, lhe tratar as feridas dos joelhos ou lhe cortar as unhas. É nesta dualidade que vive, pela qual se culpabiliza. Mas é na catarse da escrita que redime essa culpa e revela a coragem de segurar o leme da sua vida.
Os homens têm medo de que as mulheres se riam deles. As mulheres têm medo de que os homens as matem.
Margaret Atwood
A intertextualidade é, recorrentemente, convocada, para explicar como os livros a ajudaram a compreender o padrasto e a refugiar-se na ideia de que o que vivia era só mais uma história. As citações referem-se ao universo da violência e da superação de traumas.
Escreve de forma dura e clara sobre o que dói.
Hemingway
Se experienciou uma situação idêntica, deve ler este livro para desmistificar a culpa que, muitas vezes, as vítimas se atribuem por não sentirem apenas ódio pelo agressor. Se nunca teve contacto com esta realidade, deve ler o livro, porque a violência doméstica, mesmo que não seja visível, mora ao nosso lado.
A violência, seja qual for a maneira como ela se manifesta, é sempre uma derrota.
Jean-Paul Sartre
“Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Novo Acordo Ortográfico”
Paula, artigo premente para quem ainda não conhece a coragem e lhes falta bravura em denunciar situações que, infelizmente continuam a existir na sociedade. Este livro, lido também por mim, e num sopro, é a prova disso. Grata por tão brilhante análise. A Madalena iria gostar de o ler!
Artigo premente para quem ainda não conhece a coragem e lhes falta bravura em denunciar situações que, infelizmente continuam a existir na sociedade. Este livro, lido também por mim, e num sopro, é a prova disso. Grata por tão brilhante análise.
A Madalena iria gostar de o ler!
Bravura, sim. Eu não conseguiria expor-me desta maneira.
Não li o livro ainda, lerei certamente.
Fizeste uma análise bem detalhada, e que puxou a curiosidade do leitor sobre o livro em si, e sobre a escrita da autora.
Pelo que vejo, ele é uma narrativa agressão e sentimento de culpa do agredido.
Adorei
Não encontramos o síndrome de Estocolmo, mas esta será, provavelmente, a realidade de muitas vítimas: nem só ódio, nem só admiração.
Li este livro de uma rajada. De imediato, o guardei sem pensar mais nele. Não me tinha “agarrado”. Mas, ao ler esta interpretação da Ana Paula Campos, senti que não dei hipótese ao livro. Vou reler, com calma , imbuída das palavras que agora ressoaram em mim. Obrigada. Espero ler mais opiniões, desta vossa colaboradora, sobre outros livros. Vou seguir atentamente.
A minha primeira impressão alterou-se, depois de ouvir a autora.
Li o livro, que não me prendeu o suficiente. No entanto, o tema que retrata é bastante comum e pode eventualmente, tal como a protagonista, servir de catarse para alguém que sofre ou sofreu do mesmo problema.
Quanto a mim, a culpa não está bem expressa, uma vez que nas entrelinhas se pode ler um certo fascínio da parte dela pelo padrasto. Talvez falte acrescentar emoções à relação. Não sei há ali algo seco que não combina com alguém que exerce violência sobre outrem.
Eu encontro a culpa precisamente nessa duplicidade de sentimentos.
Uma análise que nos leva a querer ler o livro!
Obrigada, Olinda. 🙂
Não li o livro, Terei de o ler, depois de ter lido esta resenha.
Fiz uma leitura diferente, depois de ouvir a autora.
Uma visão bastante intimista deste livro. Obrigada pela partilha.
Eu é que agradeço o comentário de quem me ensina. 🙂
Não li o livro, porque só o poderei adquirir quando voltar a Portugal (não encontrei e-book). Agradeço a análise pormenorizada, que deixou a vontade de o ler. Obrigada, Ana Paula, gostei muito.
Obrigada, Teresa. De facto, deve ser uma angústia não ter acesso aos nossos livros físicos.
Não li o livro, mas fiquei curiosa depois desta análise. Parabéns pela sua partilha.
Obrigada, Sílvia. 🙂