A luta a que se assiste nestes últimos meses pela liderança do partido trabalhista britânico é mais do que uma simples corrida pelo comando de um dos maiores partidos políticos da Grã-Bretanha: é uma batalha de facções.
Para percebermos esta eleição temos de compreender a história por detrás das facções que cada um dos quatro candidatos representa. Mais do que as facções, temos de perceber como o partido evoluiu desde 1900, ano da sua função.
Como tudo surgiu
O partido trabalhista é resultado da conjugação de dois factores. Primeiro, era o partido que consumava politicamente a ideia de uma vanguarda parlamentar que representasse os interesses do movimento sindical e que defendesse os interesses da classe trabalhadora. Segundo, o alargamento do sufrágio, tornando-o quase universal para todos os homens, possibilitou a participação nas eleições dos partidários da causa trabalhista: o operariado.
Nestes primeiros anos, o partido trabalhista funcionou, essencialmente, como um ‘grupo de pressão.’ Tinha os seus alvos bem definidos. A natureza desregulada do mercado era o seu preferido. Com uma política bem delineada, o partido cresceu muito em certas partes do país, especialmente nas áreas mais industrializadas.
Os primeiros governos trabalhistas, as primeiras rupturas
Após a eleição de 1918, o partido trabalhista começa o processo de abertura à diversidade, congregando várias visões do socialismo. Foi nesta altura que o partido e o Co-operative Party firmam um acordo para concorrerem juntos às eleições. Entretanto, o colapso de um dos grandes partidos do sistema, os Liberais, abre caminho à adesão do tradicional eleitorado liberal à causa trabalhista, levando isto à formação, em 1923, do primeiro governo trabalhista.
Este primeiro governo rapidamente se desmorona. Contra todas as expectativas, MacDonald voltaria a ganhar um confronto eleitoral. Seria em 1929, ano da Grande Depressão, mas outra vez sem maioria absoluta. Forma o segundo governo trabalhista que duraria cerca de dois anos, o suficiente para abrir a primeira grande ferida ideológica dentro do partido.
McDonald era, ao contrário de parte do seu partido, favorável à implementação de políticas de austeridade, de balanço das contas públicas e cortes nos serviços sociais do Estado. Estas políticas causaram uma enorme sangria nos serviços públicos e o aumento do desemprego.
O panorama geral desagradava o partido. MacDonald é forçado a demitir-se. Apela à formação de um governo de unidade nacional, englobando os conservadores e os liberais. Isto deixa os trabalhistas em polvorosa. É expulso do partido e, como consequência, forma o National Labour com mais dois seus colegas de governo.
MacDonald era a direita do partido. Foi, segundo David Marquand, antigo deputado do partido trabalhista, “o percursor dos Blairs, dos Schröders e dos Clintons.”
Vitória indiscutível, diferenças inconciliáveis
Termina a II Guerra Mundial. Após seis anos no governo de unidade nacional com o partido conservador de Churchill, os trabalhistas ganham a primeira maioria absoluta da sua história. Clement Attlee, figura que liderava o partido desde 1935, torna-se no segundo primeiro-ministro trabalhista, em 1945.
Desde o início, Atlee demonstra ser bem diferente de MacDonald. O seu governo começa por implementar um plano económico baseado nas teorias económicas de Keynes, com um vasto programa de nacionalizações. Para encetar este programa, o governo trabalhista começa o processo (ainda polémico) de rápido desmantelamento do império – acelera as negociações para a ‘libertação’ rápida das colónias sob o seu domínio. Manter um extenso império por muito mais tempo era uma ilusão, pelo menos financeira.
Contudo, a grande promessa eleitoral fora a criação do Estado-Providência, especialmente de um Serviço Nacional de Saúde, gratuito para todos os cidadãos. E é nesta questão que surge a primeira grande ruptura dentro do governo maioritário trabalhista. Bevan, ministro da saúde, acha que o Serviço Nacional de Saúde deve ser gratuito para todos os seus beneficiários. Gaitskell, ministro das finanças, é contra a pretensão de Bevan e obriga-o a implementar uma espécie de taxas moderadoras, de modo a financiar o National Insurance Fund, que tinha perdido verbas do orçamento de Estado que haviam sido redistribuídas para o rearmamento das forças armadas.
É nestes anos de hegemonia trabalhista que o partido se divide definitivamente em duas grandes fações, presentes até aos dias de hoje: os socialistas (mais à esquerda), conhecidos na altura como ‘Bevanites’ e os sociais-democratas/sociais liberais (mais à direita), os ‘Gaitskellites.’
Attle deixa a liderança do partido, abrindo espaço à medição formal de forças entre as duas fações. Gaitskell ganha a Bevan por uma margem considerável. Durante alguns anos, as duas fações confrontam-se. Para sanar a situação, Gaitskell decide integrar Bevan, tornando-o vice-líder do partido, e os seus partidários.
Gaitskell morre e é substituído por Harold Wilson, o líder do partido trabalhista mais bem-sucedido de sempre, vencedor de quatro eleições. Apesar de bem-sucedido, foi fonte de muita discórdia e descontentamento. A sua fuga ideológica para o centro desapontou os seus apoiantes e não satisfez os seus detratores.
Wilson resigna para o espanto de todos. É substituído por James Callaghan, numa das eleições mais concorridas de sempre. Destacadas personalidades como Michael Foot, Tony Benn, Roy Jenkins e Denis Healey concorrerem contra o candidato ‘apadrinhado’ pelo líder cessante.
“The Wilderness Years”
Após a derrota nas eleições contra Margaret Thatcher, Callaghan demite-se e Michael Foot torna-se líder do partido. O facto de ambicionar virar o partido à esquerda, levaria a que o conhecido como ‘Gang of 4’ deixasse o partido. Roy Jenkins, David Owen, William Rodgers and Shirley Williams formam o Social Democratic Party (SDP), que viria a durar poucos anos, fundindo-se com os Liberais no final da década de 80.
A liderança de Foot demonstra-se desastrosa. Apesar de grande orador, revela-se incapaz de comandar um partido que atravessava uma verdadeira guerra civil. O auge do desastre dá-se, quando os trabalhistas obtém o pior resultado eleitoral desde o pós-guerra. O partido tem quase metade dos deputados do partido do governo, os Conservadores.
Foot demite-se e sucede-lhe Neil Kinnock, um galês que toma como missão limpar a imagem do partido, expulsando elementos mais radicais, nomeadamente a facção Militant. Depois de completamente afastados, começou o processo de (re)construção da credibilidade do partido, mas, mesmo assim, perde as duas eleições a que concorre. Primeiro contra Thatcher, depois contra Major.
Ao fim de 9 anos, demite-se, sucedendo-lhe John Smith, que seria líder do partido durante dois anos, até à sua morte.
É num cenário de luto que se elege o novo líder do partido: Tony Blair. Assume logo a pretensão de acabar com ‘a selva da oposição’ a que os trabalhistas foram submetidos durante dezoito anos.
“New Labour”
Tony Blair começa um processo de reforma interna do partido. Deixa a cargo de Peter Mandelson, director de comunicações do partido e (re)conhecido spin doctor, a reformulação da identidade do partido. Muda também os estatutos, repelindo a emblemática ‘Clause IV,’ símbolo da herança socialista. O partido estava a caminho da maior viragem à direita da sua história.
Foram três anos de preparação para a eleição de 1997. O momento era de euforia e o resultado confirmaria esse sentimento.

Apesar do entusiasmo dos primeiros anos, a popularidade de Blair declinaria bastante depois da entrada do Reino Unido na guerra do Iraque. Em 2007, dois anos após a sua terceira vitória eleitoral, vê-se forçado a resignar muito por culpa do desencantamento do eleitorado, bem como pela insistente pressão de Gordon Brown (ministro das finanças) que, desde 1994, ambicionava ser líder do partido e, portanto, primeiro-ministro.
Regresso às origens
Em 2010, depois da derrota nas eleições, Brown é substituído por Ed Miliband. Segundo os analistas, o partido moveu-se efetivamente para a esquerda, mas aparentemente isso parece não ter produzido grandes resultados nas eleições deste ano. Foram recuperados alguns assentos no Parlamento, mas nada suficiente para chegar à maioria absoluta.
O partido trabalhista esperava ganhar as eleições. A derrota (estrondosa) levou à demissão de Ed Miliband e à convocação de eleições internas. Mais do que a eleição do novo líder, os trabalhistas estiverem este Verão a discutir o passado, o presente e o futuro, algo que raramente acontece num partido político. Havia quatro candidatos, cada um com posicionamentos políticos distintos.

Jeremy Corbyn saiu como vencedor. Tido como o candidato mais à esquerda, é o representante do Old Labour, parte do partido ‘agarrada’ aos princípios e ideais do socialismo das raízes do partido. É a favor da nacionalização de grandes indústrias e das linhas férreas. É pela saída da NATO e foi contra a guerra do Iraque, tendo sido um dos grandes oponentes de Blair neste ponto (e em muitos outros).
A vitória esmagadora de Corbyn agrava o tom que tem sido constantemente usado relativo à possibilidade de o partido sobre a sua liderança caminhar ainda mais para a esquerda, o que se revelou desastroso com Miliband. Contudo, o mesmo diz que o problema de Miliband foi oferecer um programa de austeridade ‘light’, confundível com o dos conservadores.
Este é o ponto nevrálgico da discussão. Corbyn quer uma mudança à esquerda. Liz Kendall, candidata do New Labour, quer uma mudança à direita, reconstruindo o partido à imagem daquilo que Blair fez. Contudo, sua proposta foi amplamente recusada pelo partido – ficou em último lugar nesta eleição interna.
Por sua vez, os partidários dos candidatos mais moderados referem que tanto a facção mais à esquerda, como a mais à direita degradaram a imagem do partido. O Old Labour ficou para sempre associado ao “the longest suicide note in history,” programa de governo ultra-radical que levou o partido à pior derrota eleitoral dos últimos 70 anos. O New Labour ficou para sempre associado à desastrosa guerra no Iraque.
Contudo, Andy Burnham e Yvette Cooper, os candidatos moderados, falharam redondamente onde os outros dois não falham: são ideologicamente ‘pães sem sal,’ acusados de serem ‘flip flopers.’ Ora, se é mais à esquerda, ora se é mais à direita.
Uma coisa é certa, nada vai ser como antes. A esquerda do partido renasceu, a direita perdeu a vergonha da herança de Blair. A vitória de Corbyn pode levar, como no passado, a que o partido trabalhista se divida, e que surja um novo partido político com relevância eleitoral.
Com Corbyn, os trabalhistas vão aproximar-se das suas origens. Agora, para manter esta ‘broad church‘ unida, o novo líder tem uma tarefa hercúlea pela frente: unir o partido e prepará-lo para o embate eleitoral de 2020. Com uma parte considerável dos deputados a boicotarem a sua ação como líder e com os media ligados ao partido conservador a atacarem-no, Corbyn parece ter uma tarefa impossível pela frente.