Jardim europeu ou selva africana? Sombras do passado colonial

Recentemente foi noticiado mais um conflito em África, e no Sudão, que já levou a que cerca de 33.000 pessoas abandonassem a capital e cerca de 10.000 procurassem refugio em países vizinhos, como o Chade, República Centro-Africana ou a Etiópia1. Infelizmente, não se trata de um caso único. Países como Moçambique, República Democrática do Congo, Etiópia, Níger ou Mauritânia, fazem parte do rol de países que se consideram em estado de guerra. Estes países fazem parte dos cerca de 21 países africanos em guerra, guerra civil, insurgências terroristas de cunho religioso ou político.

Neste momento, África é o continente com mais países em estado de guerra. Em cinco continentes só um apresenta esta instabilidade. Porquê? Josep Borrell, Alto Representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros, pronunciou o que tem sido a visão europeia para o mundo ao afirmar que a “Europa é um jardim (…). O resto do mundo é maioritariamente uma selva”. A Europa é um jardim, justifica ele, por uma combinação de três fatores: liberdade política, prosperidade económica e coesão social. Três fatores que a humanidade tem sido incapaz de construir, segundo Borrell. Liberdade política e coesão social também existem noutras partes do globo, mas a prosperidade económica europeia foi fundada na exploração de recursos naturais e humanos de outros continentes, nomeadamente, África.

Para que a construção deste jardim “borrelliano” fosse possível, África foi dividida pelas potências coloniais, como a França e o Reino Unido que ficaram com a parte de leão. Uma das evidências desta divisão é o número de fronteiras que se caraterizam por linhas retas. Não foi apenas uma divisão geográfica, mas também cultural, política e económica, com a imposição de sistemas de valores, políticos ou culturais aos povos africanos, que ainda hoje sentem as consequências.

A dependência económica de África para com os países desenvolvidos é outra destas consequências. Apesar de a República Árabe Saarauí ser a última colónia que ainda existe em África, ainda se mantêm algumas das hierarquias de poder (económico) com países europeus e as antigas colónias africanas.

A teoria do desenvolvimento que coloca a Europa no topo da escala oculta uma realidade sombria. Com a colonização europeia foram impostos valores, sistemas políticos, económicos ou culturais. As consequências ainda hoje estão à vista. Ainda se verifica uma dependência económica africana relativamente aos países desenvolvidos que perpetua esta relação de poder.

Ficamos muito preocupados com a necessidade da transição energética e o abandono dos combustíveis fósseis; ficamos emocionados com a guerra na Europa, esquecendo as outras Ucrânias. Discutimos, até, o aspeto que Cleópatra tinha2.

Quando desfilarmos orgulhosamente nos veículos elétricos, seria bom que nos lembrássemos que muitas pessoas trabalharam em condições de escravidão, algumas dando a vida, para termos baterias que alimentem a nossa consciência ambiental.

O idílico espaço que habitamos está longe de ser um jardim. Na verdade, para muitos, foi uma infernal selva invasora. A instabilidade que se vive em África é fruto das fronteiras artificiais criadas pelos europeus que não tiveram em conta a realidade social local, mas também pela exploração desenfreada dos recursos económicos, alimentando o desenvolvimento europeu e privando um continente inteiro da prosperidade e desenvolvimento.

1Os números são maiores, mas nem todos os países registam a passagem destes refugiados.

2Não haja enganos: ela era grega, portanto…

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