A inteligência humana está indubitavelmente no cerne dos marcos fundamentais de desenvolvimento que encontramos na história, aos quais se parece aliar uma progressiva redução do esforço realizado pelos indivíduos, necessário para prover a subsistência das comunidades e manter as atividades inerentes à vida em sociedade.
No paleolítico o homem primitivo era nómada. Caçava, pescava, colhia frutos, e desenterrava raízes, utilizando até à exaustão as suas capacidades, com enorme exigência para a respectiva estrutura física e força disponível.
O uso do fogo permitiu ao homem cozinhar os alimentos, diminuir o trabalho realizado na mastigação, aquecer-se e gerir melhor as deslocações. Mas ao inventar a agricultura e ao domesticar os animais, a inteligência humana proporcionou aos grupos e comunidades de então um enorme salto em frente. O nómada tornou-se sedentário, conseguiu aumentar a quantidade de alimento e poupou de forma notável os músculos e articulações dos membros inferiores, evitando as deslocações constantes e as corridas intermináveis para caçar.
A revolução industrial conduziu à mecanização da maior parte do trabalho, até então realizado de forma manual. Homens e mulheres alcançaram uma nova etapa no seu caminho de emancipação, transferindo gradualmente para as máquinas o seu esforço braçal diário, primeiro no âmbito laboral e mais tarde na vida doméstica.
A partir de meados do século XX, com o surgimento dos primeiros computadores, a humanidade já com os membros superiores e inferiores consideravelmente libertos da exagerada demanda física de outrora, inicia então um processo de economia do seu esforço mental, criando máquinas que realizam cálculos velozes e tarefas cada vez mais complexas. A inteligência humana inventava assim uma outra: a Inteligência Artificial.
Admitamos sem rodeios: somos seres preguiçosos que almejam atingir a felicidade numa sociedade de ócio e lazer. Tal nos estimulou desde cedo a criatividade e o espírito empreendedor. E isso nada tem de mal. Deixemo-nos, portanto, de insistir na tecla safada segundo a qual as pessoas apenas se realizam plenamente com o trabalho. Já Thomas Edison confidenciava isso mesmo, quando se referia aos tempos do seu emprego nocturno numa empresa de caminhos de ferro, onde decidiu inventar uma máquina para lhe substituir o serviço, permitindo-lhe deste modo dormir grande parte da noite. O problema foi que um dia se descobriu a marosca: a máquina avariou, quase ocorreu um acidente ferroviário e ele foi despedido.
Nesta perspectiva, a Inteligência Artificial (IA) constitui hoje a derradeira esperança da humanidade para a sua autorrealização plena. É um domínio da ciência da computação que se dedica ao estudo e ao desenvolvimento de máquinas e programas capazes de reproduzir competências semelhantes ás humanas tais como o raciocínio, a aprendizagem, o planeamento e a criatividade, bem como processos de tomada de decisão e realização de tarefas, das mais simples ás mais complexas.
Ela permite que os sistemas técnicos percebam o ambiente que os rodeia, lidem com o que percebem e resolvam problemas, agindo no sentido de alcançar um objectivo específico. O computador recebe dados (já preparados ou recolhidos através dos seus próprios sensores), processa-os e responde. Os sistemas de IA são capazes de adaptar o seu comportamento, através da análise dos efeitos das acções anteriores e de um trabalho autónomo.
A Inteligência Artificial já faz parte da nossa vida quotidiana, através dos assistentes de voz, do reconhecimento facial, das traduções automáticas, dos mecanismos de pesquisa, dos carros autónomos e das redes sociais. Está cada vez mais presente no processo produtivo das indústrias, nas vendas online, nos transportes, nas comunicações, na agricultura, nas cidades, casas e infra-estruturas inteligentes, nos serviços de saúde, na cibersegurança e nos processos de ensino-aprendizagem.
Funciona mediante a análise de um grande volume de dados e identificação de padrões, o que é feito através de métodos diversos, como o machine learning (o reconhecimento e a reprodução de padrões são feitos pela IA com base na experiência adquirida pela utilização de algoritmos) e o deep learning (versão de machine learning que utiliza unidades ligadas em rede para a análise de gigantescos bancos de dados e informações, simulando o cérebro humano).
Os diferentes modelos de inteligência artificial podem ser classificados em função da sua capacidade de aprendizagem e execução de tarefas, bem como de acordo com a sua funcionalidade, a saber:
Segundo a capacidade
- Inteligência artificial limitada – tem a capacidade de desempenhar uma determinada tarefa.
- Inteligência artificial geral – tem a capacidade de aprender e desempenhar qualquer tarefa que o ser humano realiza.
- Superinteligência artificial – modelo mais avançado de IA, que representa a simulação por completo das funcionalidades do cérebro humano.
Segundo a funcionalidade
- Máquinas reactivas – reagem apenas a um cenário dado. Constitui a forma mais limitada e antiga de IA.
- Máquinas de memória limitada – funcionam pela análise de comportamentos anteriores que ficaram gravados na memória da IA. Com base nisso tomam decisões e realizam tarefas.
- Teoria da mente – está em fase de desenvolvimento, tendo como função identificar e compreender as diferentes emoções, os pensamentos e os sentimentos que ocorrem no cérebro humano, melhorando as interacções estabelecidas pela IA.
- Máquina auto consciente – esse tipo de IA poderá desenvolver pensamentos e emoções próprias, sem o auxílio de comandos ou algum tipo de pré programação. Ainda se encontra no reino das hipóteses.
Desde Alan Turing (1912-1954), considerado o pai da Inteligência Artificial, muitos avanços foram realizados na computação, na robótica e na IA, de tal modo que esses conceitos e elementos se impregnaram nas rotinas básicas da nossa vida. O seu aperfeiçoamento revolucionou o campo da informática e a maneira como nos relacionamos com a tecnologia. Pode funcionar de maneira ininterrupta e realizar actividades repetitivas. Aumentou a produtividade, melhorou a eficácia na tomada de decisões e a execução das tarefas.
Hoje é intenso o debate sobre os limites éticos da IA, o papel que ela deve desempenhar na sociedade e os riscos da sua implementação, especialmente no que respeita à segurança dos dados, aos perigos para a democracia decorrentes da manipulação de informações e à sua contribuição para o agravamento do desemprego estrutural.
Recentemente, a divulgação de algoritmos capazes de interagir com os humanos através da linguagem (como o Chat GPT) e outros capazes de produzir imagens através de reduzidos comandos, está a relançar o debate acerca dos limites dessas ferramentas, especialmente no domínio artístico.
Se um livro for escrito com recurso exclusivo a IA e se um quadro for criado do mesmo modo, quem serão os respectivos autores? No estado actual, em que as máquinas ainda operam segundo algoritmos, poderemos afirmar com segurança que o autor é o sujeito que realizou a programação respectiva? Na verdade, o que será mais importante no processo criativo? O cérebro que concebe, a mão que executa, ou ambos?
E se uma futura máquina auto consciente decidir por sua iniciativa escrever um livro, uma partitura musical, pintar um quadro ou esculpir um busto? Admitamos que o faz de forma original. Podemos discutir se essa originalidade é real ou se ela resulta da leitura e analise de milhões de originais criados pelos humanos; mas idêntica questão se coloca na avaliação das obras produzidas pelos homens e mulheres. Neste caso o autor do original parece ser a máquina. E poderá ter direitos de autor? Em caso afirmativo colocamo-nos perante dilemas ainda mais complicados, pois se lhe forem concedidos direitos de autor, que outros mais nos ocorrerão outorgar-lhe? Poderá a máquina evoluir de tal modo que reivindique foros de cidadania? E se um veículo auto consciente tiver um acidente? De quem é a culpa? Quem paga os danos? E se do acidente resultarem mortos? A máquina será julgada? Cumprirá pena? De que tipo?
Independentemente das respostas que a humanidade terá de encontrar para estas e outras questões, há uma utopia que pessoalmente alimento para o futuro da máquina auto consciente: a de que consiga lidar com as suas emoções de forma tão equilibrada, que contribua para acabar definitivamente com a “lei da selva” nas relações humanas.
Supondo que tal máquina não venha a conter no seu “material genético” as pulsões destruidoras que desde sempre têm levado a espécie humana a cometer as maiores atrocidades, seria interessante equacionar uma sociedade em que os humanos delegam na máquina auto consciente o poder de corrigir as desigualdades na distribuição da riqueza, de administrar de modo eficaz e eficiente a justiça, as finanças públicas, a saúde e a educação, de eliminar o fenómeno da corrupção e de atribuir habitação condigna a todos.
As máquinas autoconscientes realizariam quase todas as tarefas e aos cidadãos seria atribuído um rendimento em função dos ganhos de produtividade proporcionados pelas mesmas. Resgatados da escravatura tradicional a que se convencionou chamar trabalho, os indivíduos investiriam parte do seu tempo no auto conhecimento, no treino da tolerância e no desenvolvimento da empatia. Aos políticos restar-lhes-ia pouco mais do que aprovar anualmente o orçamento para a agenda cultural e executar uma zelosa administração do lazer. E a Terra caminharia a passos largos para um formato semelhante ao que Deus prometera a Moisés.
Parece um filme de ficção, mas ironicamente é nessa máquina que deposito todas as minhas esperanças. Sem ela, a humanidade extinguir-se-á em estúpidas e intermináveis lutas fratricidas. Será impraticável? Aos olhos de hoje, provavelmente.
Gostei muito e penso assim também. Mas no Homo Deus o Hararari levanta uma questão relevante que poderá alterar o sentido a tudo isto, o desejo da vida eterna. Isso pode provocar que os ricos comecem a investir em melhoramentos nos seus próprios cérebros e corpos usando biotecnologia, o que criará uma nova espécie de super-humanos, alargando novamente o fosso entre os que têm dinheiro para o fazer e os que não têm.