Ela, de todos, foi a primeira a chegar.
Veio calma e serena. Com duas tranças feitas na perfeição que ficavam maravilhosas no rosto cor de caramelo, vestida com calças cor de rosa, com a mensagem “I’m a star” na camisola branca. Menina de ar doce. Carregava às costas uma mochila de princesas. Quem sabe não quererá ser ela uma também, um dia…
Chegou e não falou. Não olhou nos olhos. Não reagiu ao meu cumprimento, nem ao da professora que já a conhece e sabe dar-lhe o melhor trato que merece.
Sentou-se. Cruzou as pernas e os braços. Deixou-se ficar ali, a ver a chuva a cair e o céu a cinzentar-se. Eu limitei-me a observá-la até ser interrompida por uma turma em peso e pelos filhos todos. Os filhos quase me deitaram ao chão com a força do abraço.
“Gosto muito de ti, mãe“; “Hoje vais fazer de palhaça para os meninos? Trouxeste o teu nariz vermelho?“; “Mãe, oh mãe, eu estou a portar-me bem. Fiz agora um ditado. Fui o primeiro a acabar e a professora deixou-me vir até à sala dos manos.”
Seguiram-se as perguntas dos outros meninos. Todos curiosos. Todos ávidos de dar um beijinho à Estrela, de lhe dizer que é fofinha e se têm ou não irmãos e gatos, ao perceberem que um gato preto mora sentado numa lua no lado esquerdo do meu pescoço. Todos menos ela.
Rossana. Chama-se Rossana, a menina da camisola que faz dela uma Estrela.
Lancharam a comida carinhosamente entregue pela auxiliar. A menina da mochila de princesas não conseguia abrir o que lhe foi entregue. Irritou-se. Atirou tudo ao chão numa raiva desmedida.
Vi ali a minha deixa. Fui eu ter com ela, com a filha mais nova quase acoplada a mim.
– Precisas de ajuda? Posso abrir por ti?
Não respondeu. Deu um pontapé na mesa e balançou-se para trás e para a frente, a resmungar à maneira dela. Abri. Coloquei à frente dela e toquei-lhe na mão.
– Já podes comer, quando quiseres, sim?
Não me olhou. Pegou na mochila e de lá tirou um caderno quadriculado. Mostrou-me as contas que faz, sem nunca olhar para mim. Entendi que havíamos criado uma ligação. Ela tinha aceite que eu entrasse no mundinho dela, mundinho muito próprio e ímpar.
Comeu, enquanto eu folheava o livro de contas que me mostrou. No fim, esticou o braço para tocar na Estrela. Aproximei-as. Deu-lhe um beijinho. De todos, foi a única que lhe deu um beijinho. Dos barulhentos.
Sorriu, replicou os beijinhos até se cansar. A Estrela gargalhou. Ali estavam elas, duas Estrelas a serem felizes.
E eu… eu deixei-me chorar.
(o autismo não é contagioso)