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História, Folclore e a extinção dos gambuzinos

No outro dia um amigo meu muito viajado contou-me que Vasco da Gama é odiado e considerado um assassino pela população de alguns países orientais, enquanto no nosso país é considerado um dos maiores heróis nacionais de todos os tempos. Esta divergência e falta de consenso fez-me equiparar a História à Física Quântica na medida em que os factos históricos dependem do observador, que lhe atribui um carácter positivo ou negativo consoante a localização geográfica em que está. Ter-se-ia que fazer uma média global para descobrir o valor intrínseco do facto histórico a estudar, considerando que esta variável estatística por si só também não espelha a realidade de forma cabal.

Separemos então a História em dois grupos: o dos factos/processos históricos, e o grupo dos costumes e do folclore que, na minha opinião possui um valor mais transversal, consensual e universal. É através dos pequenos hábitos que se constrói a identidade de um povo: todos reconhecemos a cultura de respeito dos japoneses, os bons métodos educativos finlandeses, a leveza e sentido de humor dos brasileiros, a hospitalidade e falta de pontualidade portuguesa ou os altos decibéis da voz dos espanhóis.

Este segundo grupo também me traz alguma inquietação. O que trará o porvir? Os costumes manter-se-ão nas próximas gerações ou alguns dissipar-se-ão como vapor? A globalização e o marketing oligárquico fazem com que as pessoas tenham tendência a se uniformizar? A velocidade das cidades e a nossa rotina acelerada terão um papel importante na forma como educamos as futuras gerações?

Hoje em dia não há vagar para nada. Trabalha-se para viver, ou vive-se para trabalhar. O pouco tempo disponível é passado no ginásio, no streaming ou nas redes sociais. Há pouco tempo para olharmos para dentro de nós próprios ou nos olhos uns dos outros. Ou então não queremos, é preferível manter-se certa impessoalidade. O exemplo que estamos a dar às futuras gerações não me faz pensar numa boa transição de valores e costumes.

Confesso que estou em constante troca de ideias com certos amigos meus no WhatsApp. Num dos grupos chegamos a trocar fotos do que vamos comer, perguntando se são servidos e desejando bom apetite, num tom meio jocoso e irónico, confesso. Uma vez um desses amigos partilhou a fotografia do seguinte prato: lasanha de queijo com salsicha e ovos mexidos. Feito por ele. Depois comentou que o filho lhe disse “Adoro esta comida”. No mínimo intrigante. O que me preocupa nestas novas gerações não é a dificuldade de concentração, a provável falta de água potável ou de espécies piscícolas ou o planeta descontrolado com o aquecimento global. A minha grande cisma é pensar na possibilidade dos miúdos nunca chegarem a saber o que é comida a sério, aquela verdadeira comidinha de tacho. Inquiri muitos dos meus amigos e cheguei à seguinte conclusão: nenhum deles sabe fazer ou já fez cozido de grão ou que use sequer a panela de pressão. Por isso, penso que esta propriedade de estarmos em família a usufruir de uma boa refeição tem tendência para cair em desuso. Ficar 3 horas na cozinha hoje em dia é pedir demasiado ao tempo. É tempo de pouco vagar e de muita aceleração. Tudo a despachar: Viva a Junk Food, a chispalhada enlatada e o grão em conserva! Os robots de cozinha estão a substituir as mãos com calos dos nossos avós. Esses calos possuíam uma importância incalculável. Pedi a um amigo para pesquisar uma receita de cozido de grão para robot de cozinha e ele não conseguiu encontrar. A maior aproximação foi o cozido à portuguesa ou a “meia-desfeita da avó Anica”. Coitada da Avó Anica.

Também acho piada a quão refinado são os produtos biológicos. No tempo dos nossos avós era tudo biológico e bem mais barato. Produzia-se para o próprio sustento e a respeitar as estações e o ciclo natural dos alimentos. Hoje, o biológico é um rótulo para pagarmos um balúrdio, e muita das vezes o produto nem é assim tão “biológico”.

Ou então comemos para nos exibir: a paixão pelo gourmet e a experiência gastronómica imperdível e fotografada. São os delírios do mundo conectado e daquilo a que chamamos progresso. “Este Século serve para ser filmado.”

A cultura ocidental depositou, na minha opinião, demasiada esperança na tecnologia para resolver todos os problemas da sociedade e do quotidiano individual. Pelo caminho, perde-se a faceta espiritual e de transmissão de alguns costumes que nos fazem convergir como povo. Lido diariamente com crianças dos 11 aos 16 anos e vou me apercebendo de algumas das suas facetas. Muitas delas não sabem ver as horas em relógios com ponteiros, não conhecem os naipes e a constituição de um baralho de cartas, não gostam de brincar na rua e estão a olhar para o telemóvel nas horas do lanche. Não sabem o que é um berlinde e vão ser responsáveis ela extinção dos gambuzinos.

Sei que cada geração defende que “no seu tempo é que as coisas eram boas” e que “isto é que eram tempos”. Eu não fujo à regra. As tecnologias têm inúmeros pontos positivos, mas temos que a utilizar de forma apropriada, estimulando-nos em busca de mais conhecimento e de resolução de problemas. Infelizmente, penso que a maior parte de nós a usa para se distrair e para objectivos de pouca utilidade. Ao ser tudo demasiado rápido, a contemplação não pode ocorrer e a transmissão de valores e de tradições também não.

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Antigo Acordo Ortográfico

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