Gratidão de Contabilista

Dar desinteressadamente é das atitudes mais louváveis do ser humano. A generosidade para com o outro não é necessariamente traduzida em valores materiais, mas é dar afecto, o seu tempo, o seu carinho, a sua atenção, dar uma mão para ajudar a levantar ou para amparar uma queda, ou também dar apoios palpáveis para concretizar um sonho ou suprimir uma necessidade. Pode traduzir-se de milhares de formas diferentes, das mais complexas às mais singelas. Pode ser apenas uma companhia, uma boleia, uma frase, um incentivo ou um abraço, ou qualquer outra demonstração de zelo pelo bem-estar do outro.

Dar abertamente o que se tem e pode, sem agenda, sem ulterior interesse ou sem sentimento de dívida ou expectativa é uma manifestação de altruísmo genuíno. Talvez seja empatia, talvez seja solidariedade, ou muito mais do que isso, amizade.

Não confundir a generosidade com a caridadezinha, com a esmola, que de altruísta tem muito pouco, movendo-se antes pelo culto do ego, da imagem externa, de uma pretensa superioridade moral ou religiosa. Quem dá de boa vontade não informa o mundo que o faz, dispensa bem a publicidade, a exibição e o elogio.

Quem recebe, se não sofrer de complexo narcisista ou não tiver capacidades emocionais ou intelectuais afectadas, sentir-se-á grato por ser alvo da ternura ou bondade de outro. Mas quando o sentimento de gratidão se transforma num balancete entre o deve e o haver, numa medida calculista que atribui valores quantitativos e materiais a cada acto, o sentimento é desvirtuado. Chega mesmo a ser um pouco ofensivo que aqueles a quem se dá façam questão de retribuir “em igual medida” ou excessivamente, para saldar uma dívida que não existia. Chamei em tempos a esta forma calculada de agradecer “gratidão de contabilista”.

Quem dá de coração aberto, porque quer e gosta, não mantém um livro de contas em que regista o que dá, quando dá ou quanto vale o que deu. Quem dá com amor, dá porque sim, para despertar uma alegria do outro lado, nunca para formalizar uma dívida, jamais para ficar numa situação de superioridade ou de poder em relação ao outro.

Repito amiúde “a amizade não se agradece, retribui-se”. No entanto, quando a retribuição surge como uma obrigação, forçada, contida em moldes formais, pensada ao detalhe para não defraudar eventuais expectativas, porventura trabalhada ao exagero para manifestar uma gratidão que até pode ser real, soa a falso. Normalmente até são gestos que traduzem uma gratidão bem real, mas tão demasiado pensada, tão equilibrada ou abundante no seu retorno, que fica constrangida e diminuída até caber nos moldes do socialmente aceite e conspícuo. Tanto, que é desconfortável e intimidante.

Para saber dar, é necessário saber receber. Quem tem dificuldade em aceitar elogios, afecto ou um mimo, seja porque nunca o teve de forma sincera, porque tem a auto-estima desfeita, porque tem uma imagem desfigurada de si próprio ou por outro motivo qualquer, não tem padrões nem referências aos quais se comparar, fica perdido, muitas vezes com medo, aterrorizado de que este afecto lhe seja cobrado de formas a que não pode corresponder. Não sabe como receber essa dádiva estranha, acha que não merece, crê que fica em dívida para com quem dá e tenta colmatar o défice logo que possa, atabalhoada e exageradamente.

Quem não está habituado a sentir-se amado fica de tal forma espantado com demonstrações abnegadas de afecto que pode confundir o amor com uma benesse ou uma espécie de favor. É uma visão deturpada dos afectos, mas é comum quando a visão do próprio é, também ela, deturpada. Assim, tem maior probabilidade de ter uma forma calculista de reciprocar, o que muitas vezes cai no exagero, na subserviência, numa hipérbole que não toma toda a extensão que aparenta. Contorce-se em agrados, capaz de sacrifícios que ninguém quer e que se tornam até incómodos.

O amor (seja em que forma for) não é uma concessão, não é um prémio que se atribui mediante atributos ou provas de esforço, até aí todos sabemos – por muito difícil que seja a sua definição, a natureza ambígua dos afectos será consensual.

Quem gosta do outro só o quer ver bem. Quem gosta do outro quer e precisa de retribuição. Somos animais sociais e carecemos de validação, dependemos do suporte emocional de uma rede de proximidade. A expectativa depositada nessa retribuição não é cobrança, é perfeitamente legítima e contradiz o desapego, reforça os laços que permitem o crescimento e aprofundamento das relações humanas. Quem gosta quer ser gostado de volta.

Não se agradece a amizade ou o afecto. Não se compra, nem com géneros nem com gestos magnânimes. Merece-se. Conquista-se. Respeita-se. Retribui-se a seu tempo, quando a ocasião se proporcionar, se houver vontade e reciprocidade. Ninguém quer beijos falsos. Ninguém gosta de abraços forçados. Ninguém precisa de poemas e odes que não sejam verdadeiros. Basta aceitar e acender um sorriso.

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