Silêncio. A tranquilidade ondula a água cor de esmeralda da baía de Lan Ha. Sentada no kayak, de olhos fechados, quase consigo esquecer o som que fez o meu coração ao partir.
Na bagagem para o Vietname, levei tudo o que me soube sarar. O colo da minha mãe, quando lhe apareci à porta com gatos, livros, roupa e as mãos em concha a tentar equilibrar a confiança que me escorria pelos dedos. Ela a ajudar-me a despir a vergonha de ter falhado não sabia bem em quê. Eu chateada, a lembrar-me de procurar a independência nos bolsos, mas a perceber que a tinha perdido no caminho que fiz entre quem era e quem tinha de ser.
Levei também a euforia triste que vomitei em tantas madrugadas até me sentir absolutamente viva dentro daquela dor. A ressaca como ressurreição. As horas em que a música demasiado alta se transformava na minha carne. As conversas no escuro, sentada num sítio sem identidade nem importância, a tentar afastar tudo o que não queria conhecer. E a omnipresença de quem é parte essencial do que nunca deixarei de ser.
No entanto, fiz questão de guardar a voz do meu melhor amigo num bolso especial, escondido bem dentro do peito – não fossem no aeroporto achar que era material explosivo. A voz dele a calibrar-me a respiração no caos, a dizer-me para encarar a vida como um gerundio: vivendo. A lembrar-me de uma frase de Chico Buarque que avisa que nunca somos, sempre estamos.
Comprei o bilhete de avião depois de, um dia, vestir um casaco e perceber que a independência afinal estava escondida entre as costuras de um bolso, transformada. Penso: Vivendo, não é? Bem, vamos a isso. Mas exijo uma revolução. Foi essa a primeira peça que coloquei na mala.
Agora, na baía de Lan Ha, respiro sozinha pela primeira vez. O mundo entra-me pelos sentidos. Percebo que a revolução chegou. Era diferente do que eu esperava. Baixo as armas, dou-lhe as boas-vindas. E deixo-me ficar com os dedos a dançar pela água, de olhos fechados, enquanto a sinto amaciar as artroses do meu coração.