Seguindo uma perspetiva histórica, o Partido Socialista (PS) sempre esteve limitado a negociar e fazer coligações à sua direita – com o Partido Social-Democrata (PSD) ou o Centro Democrático Social (CDS-PP) – ou a governar sozinho, em maioria relativa ou absoluta. Em todas as legislaturas, o Partido Comunista Português (PCP) distanciou-se do compromisso com o status quo e as normas capitalistas: uma abordagem que foi criticada constantemente por lhe permitir escapar ao maior escrutínio sobre os partidos que governam. Além disso, a retórica quotidiana do Bloco de Esquerda (BE) e do PCP contribui para essa perceção da (falta de) abertura dos partidos mais à esquerda para qualquer tipo de compromisso. Quer em campanha eleitoral, quer durante o exercício político das legislaturas anteriores, estes partidos forçaram um cordão sanitário, que os separava do PS.
Uma das situações mais relevantes deu-se na sequência das legislativas de 1999, nas quais o PS conseguiu 115 deputados, menos 1 do que o necessário para a maioria absoluta, o que coincidiu com a primeira vez que o BE conseguiu ter representação parlamentar, com 2 deputados. Ainda assim, o jovem partido manteve-se na oposição, recusando associação com o executivo de António Guterres. Esta tendência manteve-se até 2015, momento em que foi contrariada não só pelo BE, mas também pelo PCP: pela primeira vez na democracia portuguesa, os partidos à esquerda do PS envolviam-se num acordo governativo, ainda que sem funções executivas.
A exceção que confirma a regra
Portanto, tendo em conta este contexto histórico e ideológico, como se justifica a geringonça? Negar o impacto conjuntural neste resultado seria, no mínimo, negligente. O período entre 2011 e 2015, durante o qual a coligação entre PSD e CDS-PP governou o país, ficou marcado por cortes drásticos em vários setores, por contenção orçamental e tentativas de estabilizar os índices macroeconómicos do país – uma estratégia, em grande parte, imposta pela troika, que monitorizou o desempenho do nosso país na sequência do resgate financeiro. Assim, a grande mensagem da oposição era pela anti-austeridade e pelas reversões da política dos 4 anos precedentes: todos os partidos nessa situação subscreviam estas ideias, ainda que rejeitassem o tratamento como uma frente unida – cada um tinha a sua estratégia e as suas prioridades. Apesar disso, a coligação Portugal à Frente (PAF) foi a mais votada nas eleições legislativas de 2015, com um total de 107 deputados.
Nesse momento, as opções eram reduzidas: ou se permitia um governo minoritário de PSD e CDS-PP, ou se verificava um impasse político ou, como sabemos, era celebrado um acordo político entre os partidos da oposição para mudar o executivo. Ainda que tenha sido uma decisão surpreendente, em retrospetiva evitar a última opção seria arriscado para os partidos de esquerda. Por um lado, caso a recuperação económica se mantivesse, os partidos da coligação PAF conseguiriam justificar a sua gestão na anterior legislatura, apresentando os índices macroeconómicos como proveito dos cortes e esforços levados a cabo entre 2011 e 2015. Por outro lado, evitar novamente um compromisso podia ser altamente penalizador para BE e PCP – o eleitor podia ficar a associar a aposta nestes partidos a uma inconsequência política, afastando-se dos mesmos.
Em todas as instâncias, sugere-se que estamos perante uma opção mais circunstancial do que uma alternativa política estrutural, pelo menos por agora – ainda assim, nada invalida que o sucesso desta legislatura não possa significar uma evolução nesse sentido.
Legitimidade questionável
É importante afastar quaisquer reivindicações de que a atual solução governativa é um resultado de engenharia política manipulativa e ilegítima. De facto, na democracia portuguesa era tradição que o partido – ou conjunto destes – mais votado ficasse encarregue das funções executivas a partir desse momento. Assim sendo, esperava-se que o PS viabilizasse a coligação Portugal à Frente, uma maioria relativa composta por PSD e CDS-PP, tal como havia sido feito no passado, em situações semelhantes. Porém, a única justificação para essa expetativa era o hábito e não a existência de qualquer imposição legal: o executivo do PS obteve o apoio do PCP e do BE, alcançou aprovação da maioria dos deputados na Assembleia da República e, assim sendo, não deve haver qualquer questão quanto à legitimidade desta solução governativa.
Por exemplo, nas eleições legislativas de 1985 o PSD emergiu como a maior força política, atingindo 88 deputados e formando o X governo constitucional da 3ª República Portuguesa. Considerando que em Portugal, na altura, para alcançar a maioria absoluta eram necessários 126 deputados[1], também teria sido possível um acordo sem o partido mais votado (PSD): Partido Socialista, Partido Renovador Democrático e Aliança Povo Unido[2] podiam garantir um executivo de base parlamentar maioritária. Seria invulgar? Sim. Seria provável? Claro que não. Seria ilegítimo? Nunca.
Resultados e ilações
O conjunto de fatores que contribuiu para a atual solução governativa também lhe garantiu alguma margem de manobra. A reversão de muitas das reformas promovidas pela administração anterior é uma parte considerável do programa político e, em simultâneo, o mínimo denominador comum entre os partidos da geringonça. Mais, ao evitarem um compromisso direto no governo, BE e PCP podem colher algum mérito dos sucessos ao longo desta legislatura, enquanto vocalizam algumas das suas exigências que não são atendidas pelo executivo socialista. Este jogo duplo tem contribuído para a projeção destes partidos enquanto competentes e capazes de colaborar, ainda que os mesmos se vejam ligeiramente restringidos no quotidiano.
Evidentemente que a análise do desempenho destes partidos será sempre controversa e, em larga medida, dependente da ideologia de quem a faz. Tentando ser o mais objetivo possível, aquilo que os principais indicadores económicos nos apresentam é positivo: crescimento económico, um défice controlado, redução da dívida pública em termos relativos, redução do desemprego, entre outros. Estes resultados permitiram a António Costa afirmar-se como um político hábil, capaz de gerar consensos improváveis e de responder a pretensões aparentemente contraditórias – entre as diretrizes europeias e os seus parceiros da geringonça, por exemplo.
Não obstante, há vários desafios que carecem de uma resposta firme e sustentável. O crescimento económico parece ser, acima de tudo, uma expressão das tendências no resto do continente europeu e do mundo e altamente dependente do turismo e da balança de serviços em geral. O país continua a ter um défice na balança comercial, não aproveitando algum do seu tecido empresarial nem repensando a sua estratégia neste domínio. Os progressos na redução da dívida são tímidos – e nunca seria fácil ter resultados significantes – e uma porção significante da queda na taxa de desemprego deve-se à população que emigrou.
Ainda assim, parece-me razoável elogiar a atual solução governativa, quer pelo que representa em termos políticos, quer pela gestão minimamente responsável dos recursos do Estado.
[1] A partir de 1991 a Assembleia da República passou a contar com 230 deputados, pelo que a maioria absoluta se tornou possível com 116.
[2] Não se discute, evidentemente, a viabilidade nem probabilidade desta opção.