Quando era pequena havia uma série infantil, Era Uma Vez O Corpo Humano, que dava aos sábados de manhã. Eu seguia de forma absolutamente assídua todos os episódios que, numa linguagem muito acessível, música alegre e desenhos animados muito apelativos, em forma de história, se propunham a elucidar-nos, ou pelo menos a despertar o nosso interesse no tema. No meu caso, cumpriu o propósito, ainda hoje sou uma apaixonada e uma curiosa pela ciência, sobretudo a biologia.
Faço parte daqueles maluquinhos que à menor referência a uma palavra de significado desconhecido, se põe a indagar na Internet sobre o mesmo. Não é uma questão de hipocondria, é mesmo de curiosidade científica. Ainda assim, não integro o grupo daqueles que se debate com os médicos, no seu curso tirado em Google, se bem que conheço quem tenha evitado um aborto aos 7 meses de gravidez, quando, em excesso de cuidado, resolveu ler a bula do medicamento prescrito para uma infecção pulmonar. O saber não ocupa lugar.
A minha avó tinha pavor de tirar sangue. Lembro-me que a primeira vez que o fiz, teria uns 11 anos, ela estava comigo e naquilo que ela acharia fazer parte da preparação, disse-me: não olhes para o braço, olha antes para o canto da sala. O que poderia ter resultado num temor irracional (afinal, o que haveria de tão horrível?), apenas suscitou a minha curiosidade e lá me encontrei eu a olhar a seringa olhos nos olhos. Muitas vezes é este pavor, passado e repassado com base em medos e suposições (qual a grávida que nunca ouviu relatos dantescos de terceiras?) que dificultam não só a vida e a saúde regular de cada um, como os afasta de iniciativas de dádiva de sangue ou outros. Lembro-me que quando me fui inscrever para potencial dadora de medula, vejo um homem deitado na marquesa, paralela à mesa onde a enfermeira lhe tirava sangue, com as pernas levantadas em ângulo de 90 graus. Confesso que não consegui entrar sem perguntar quantos litros me iam tirar, dado o preparo. A enfermeira, sorridente, respondeu-me num tom compreensivo e algo maternal: homens!
Há dias, voltei a dar sangue e, constatei que, apesar de ser verão e período de férias, as pessoas até foram chegando. Há os dadores habituais que já conversam com o pessoal técnico, há aqueles que vão pontualmente ou porque respondem a chamada de determinado tipo de sangue ou entrega por conta de familiares, e há aqueles, por quem eu tenho um respeito imenso, que vão num pânico controlado mal disfarçado, mas que fazem questão de o vencer pelo bem maior que podem proporcionar aos outros.
De facto, e excluindo questões religiosas, a maioria das pessoas com mais de 50 kg e 1,50 m de altura pode fazê-lo, desde que a sua saúde o permita, com algumas excepções definitivas (certas doenças crónicas ou ter efetuado transfusão após a década de 80) ou temporárias (tratamentos dentários, ter estado doente, viajado de países de alto risco infeccioso, ter efetuado piercings, tatuagens, mudado de parceiro sexual, etc). O volume de sangue retirado ronda os 450 ml, o que se estima ser a quantidade segura para um adulto com as dimensões mínimas atrás referidas, que terá cerca de 5 litros de sangue. Corresponde assim a 9% do sangue disponível, que normalizará o seu volume em cerca de um dia. O mesmo já não acontece com a sua composição, sendo que os glóbulos vermelhos, por exemplo, terão os seus níveis normalizados em 2 a 4 semanas e os stocks armazenados no fígado (ferritina) demoram a normalizar cerca de 2 meses nos homens e 3 nas mulheres. São processos naturais e reactivos num organismo saudável que rapidamente se reconstrói. No caso dos homens, a doação poderá ser efectuada de 3 em 3 meses, no caso das mulheres, apenas de 4 em 4, dada a perda adicional mensal da menstruação.
O facto de apenas pessoas com mais de 50 kg poderem dar sangue não se prende com a pretensa fragilidade física, mas antes com a proporção entre o sangue recolhido e o anticoagulante no saco. De facto, cumprindo a regra dos 9% de recolha do sangue circulante, seria recolhido um valor menor, não concordante com a quantidade existente de anticoagulante, sobrando saco, o que poria em causa a conservação do mesmo. Após a recolha, o sangue é sujeito a centrifugação e desagregação dos elementos, sendo separados o plasma, os glóbulos vermelhos e as plaquetas, que seguirão assim para tratamentos diferenciados.
Na sala, estava uma senhora com algum desconforto físico, era evidente que não estaria no seu melhor, mas persistiu na sua vontade de continuar a dádiva. O pessoal médico abordou-a, elevou-lhe as pernas, sempre atento e sem a deixar por um momento. Aos outros dadores foi também frequentemente perguntado se estava tudo bem. A humanidade nos seus pequenos grandes actos.
Houve um senhor que saiu após a sua dádiva, mas voltou uns minutos depois. A camisa branca tinha agora uma manga carmim, e o senhor, num bom humor invulgar, dirigiu-se à enfermeira que o tinha atendido, e sorridente disse: venho trazer a camisa, se quiserem espremer ainda se arranja mais qualquer coisa…
E a ti, o que te corre nas veias?
Você sabe quantas gotas de sangue são necessárias para te manter vivo? A mesma quantidade para salvar uma vida! Você não pode dar tudo o que tem para salvar alguém, mas pode ajudar a completar o que falta. Seja a gota que faltava.
(Campanha de doação de sangue)
Ket Antonio