Como sempre, escolheu a roupa dele na noite anterior. Passou uma a uma as mágoas presas nos cabides até escolher a camisa que mais dor lhe trazia aos dedos. Uma dor que ele sentiria no peito quando a vestisse. Tirou as calças mais pesadas. Deixou tudo em cima da cadeira de madeira. Aquele hábito era uma pequena corda de ilusão, a desfazer-se, a desfazer-se, a desfazer-se com cada movimento dos ponteiros, com cada segundo. Não era mais do que um fio de cabelo.
De manhã, viu-lhe os gestos cansados ao vestir-se de tanto sofrimento. Saíram de casa apoiados um no outro, voltaram para casa apoiados um no outro. E os dois pensavam que nunca se tinham sentido tão desabitados.
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Ela sabia que o riso dele ainda estava agarrado às paredes. Às vezes batia com cuidado à espera de ouvir uma gargalhada presa num ponto oco. Olhava para os rodapés, para as fendas, os plintos. Talvez entalada nas dobradiças das portas? Passou a oleá-las diariamente.
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O jantar foi massa com alguma coisa de que já não se lembravam. A televisão estava ligada. Mastigaram as notícias com a comida. No fim, ele abriu o armário e tirou açúcar para o café. Uma formiga passava ocupada, pequenos passos cheios de pressa. Ele começou a chorar. Por algum motivo, veio-lhe à memória um dia na praia, o cheiro a protetor e sal, o pôr-do-sol a iluminá-los como se soubesse que seriam eternos. Só que não foram.
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Às vezes, eles acordavam e ele estava sentado em cima do peito deles.
Especialmente depois de morrer.
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Havia ainda uma gaveta cheia de tudo o que ele nunca tinha experimentado. Uma gaveta-mausoléu, que batia nos olhos e na aflição sempre que iam à cómoda buscar uma manta para se protegerem do frio. Em cima dessa cómoda, o bebé era cinza.