Fotojornalismo: há lentes que procuram humanidade

Com frequência, diz-se que vivemos numa sociedade dura de ouvido. E, neste contexto em que há uma profusão de símbolos visuais, é comum ouvir-se que estamos mergulhados na “civilização da imagem”. A par de selfies sem fim e álbuns de família (digitais ou não), há um olhar fotográfico sobre o mundo, que é capaz de servir como fonte documental: o fotojornalismo.

Uma refugiada Rohingya que chora o filho morto, o pequeno Aylan Kurdi prostrado no areal da praia, uma criança nua que foge de uma explosão de gás napalm… Todas estas histórias ganharam espaço na discussão mediática, por via da força das fotografias.

Refugiada Rohingya chora o filho morto

Com efeito, de quantas histórias de destruição de famílias Rohingya já tínhamos ouvido falar antes da publicação da imagem? Muitas. Quantas histórias de refugiados naufragados tínhamos escutado? Imensas. Por outro lado, quantos relatos de violação dos direitos humanos na guerra do Vietnam tinham sido abafados até termos acesso à foto em questão? Não é possível contabilizar. Nem é esse o objectivo. Porque estamos a falar de vidas e a vida tem valor em si mesma.

Contudo, é aqui que o fotojornalismo entra, com o objectivo de mostrar que as palavras de relatos atrozes estão imbuídas de realidade. A cada história, há um rosto associado. E cada rosto representa a verdade de muitas outras faces que não chegam aos média.

Crianças fogem de uma explosão de gás napalm, durante a guerra do Vietnam

Nesta busca pela humanidade através da lente, claro que não podemos esquecer que o fotojornalista tem poder sobre a escolha do enquadramento, o ângulo e, até mesmo, da edição. E estas escolhas não são ingénuas. Contudo, a pretensa objectividade nunca lograda e a manipulação são tópicos para outro debate. Aqui, interessa reconhecer a capacidade que a fotografia tem não apenas como registo artístico, mas também como meio de elucidar a opinião pública.

Pegando no caso de Aylan Kurdi, recordamos que, até então, tínhamos estatísticas de naufrágios e a ideia de que havia pessoas a abandonarem as suas casas. E tudo isto acontecia lá longe, num mundo que não nos pertencia. Depois, apareceu a imagem de uma criança de três anos morta numa praia. Surpreendentemente, essa praia não estava numa dimensão inacessível aos ocidentais: era o resort turco de Bodrum! E essa criança, imagine-se só, era branca! Então, através da fotografia de Nilufer Demir, ficámos a saber que há crianças brancas que morrem em resorts, enquanto tentam chegar com a família a sítios de paz. Assim, neste relato imagético de humanidade, mentalmente o desastre aproximou-se do nosso pequeno mundo.

O pequeno Aylan Kurdi

Com as fotografias da guerra do Vietnam, a opinião pública americana reconheceu que estavam a ser cometidos crimes de guerra e, além disso, que a América estava também a matar os próprios filhos. Seis meses depois, o conflito chegava ao fim.

Resta-nos, agora, saber até que ponto o contacto massivo com as imagens vai diminuir a nossa sensibilidade perante o potencial choque das realidades cruéis representadas nas fotografias. Resta-nos saber se, com o tempo, a imagem de uma refugiada Rohingya que chora o filho morto não passará disso mesmo, sem desembocar em acções políticas e humanitárias. Contudo, há um aspeto sobre o qual arrisco dizer que estamos quase absolutamente seguros: cada um de nós tem um pouco de São Tomé em si mesmo – só acreditamos vendo.

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