Everywhere at the End of Time

“Everywhere at the End of Time”, em que Leyland Kirby usa o pseudónimo The Caretaker, é um dos projectos mais ambiciosos da música contemporânea, lançado entre 2016 e 2019, dividido em seis partes, ou “estágios”. Neste artigo, vamos abordar aspectos que surgem ao ouvir este álbum, analisando o seu estilo musical, impacto emocional, recepção da crítica, sua influência duradoura e temas conexos. 

Leyland Kirby é um artista reservado, que mantém uma presença discreta, preferindo deixar a sua música falar por si própria. Nasceu em 1974, em Stockport, Greater Manchester, na Inglaterra.

Kirby tem uma vasta experiência em música experimental. Começou a sua carreira nos anos 90, e já explorou vários géneros. Em 2009, Kirby lançou a editora “History Always Favours the Winners”. Aí foram lançados vários trabalhos seus, com pseudónimos como “The Caretaker” e “The Stranger”, e também o álbum “Sadly, The Future Is No Longer What It Was”. Em 2013, lançou “Watching Dead Empires in Decay”. O músico usou vários pseudónimos adicionais – incluindo Billy Ray Cyrix, Edgeley Musher e o Notorious P.I.G. – para projectos de edição limitada.

Terá sido a cena de Jack Torrance, a caminhar pelo corredor, largo e vazio, do “Overlook Hotel” – no filme “The Shining”, de Stanley Kubrick, umas das fontes de inspiração de Kirby, para o seu projecto The Caretaker.

Esta, como de resto todas as obras de Kirby, é uma obra complexa. Com samples e sons desconcertantes, Kirby compôs, como alguns já classificaram, álbuns simultaneamente nostálgicos e assustadores.

“Everywhere at the End of Time” representa uma mudança conceptual no trabalho de Kirby. Durante as seis horas assistimos a uma deterioração gradual da memória e da função cognitiva associada à doença de Alzheimer. Cada estágio representa uma fase diferente da doença, começando com uma música relativamente coesa e reconhecível e progredindo para composições fragmentadas, distorcidas e desorientadoras. O conceito por detrás do projecto ressoou profundamente, pois abordou temas universais como a perda e a fragilidade da existência humana.

Ao longo do álbum, está presente a música “ball room” das décadas de 1920 a 1940. Os instrumentos tocados são vários, e incluem piano, saxofone, trompete e clarinete. A estática é um elemento sempre presente, que varia de intensidade com a mudança das faixas.

As capas dos seis álbuns são obras criadas pelo artista inglês Ivan Seal. Este artista já tinha trabalhado com Leyland Kirby em outros projectos, como “An Empty Bliss Beyond This World”.

Kirby explica cada um dos estágios:

ESTÁGIO 1

“Aqui experimentamos os primeiros sinais de perda de memória. Este estágio é mais como um belo devaneio. A glória da velhice e da lembrança. O último dos grandes dias.”

ESTÁGIO 2

“A segunda etapa é a auto-realização e a consciência de que algo está errado, mas com a recusa em aceitar isso. Mais esforço é feito para lembrar, para que as memórias possam ser mais longas, embora com um pouco mais de deterioração na qualidade. O estado de espírito pessoal geralmente é mais baixo do que na primeira etapa e atinge um ponto antes da confusão começar a instalar-se.”

ESTÁGIO 3

“Aqui, somos apresentados a algumas das últimas memórias coerentes antes que a confusão se instale completamente e as névoas cinzentas se formem e desapareçam. Os melhores momentos são lembrados, o fluxo musical em certas partes é mais confuso e emaranhado. Conforme avançamos, algumas memórias isoladas tornam-se mais perturbadas, isoladas, fragmentadas e distantes. Essas são as últimas cinzas de consciência antes de entrarmos nas fases pós-consciência.”

ESTÁGIO 4

“A pós-consciência na etapa 4 é onde a serenidade e a capacidade de lembrar memórias isoladas dão lugar a confusões e horror. É o início de um processo eventual em que todas as memórias se começam a tornar mais fluidas por meio de entrelaçamentos, repetições e rupturas.”

ESTÁGIO 5

“A pós-consciência da etapa 5 é marcada por confusões e horror. Entrelaçamentos, repetições e rupturas mais extremos podem dar lugar a momentos mais calmos. O desconhecido pode parecer e sentir familiar. O tempo frequentemente é gasto apenas no momento presente, levando ao isolamento.”

ESTÁGIO 6

“A pós-consciência na etapa 6 é indescritível.”

O uso habilidoso de Kirby de técnicas de manipulação de som aumenta a sensação de decadência e fragmentação de melodias, distorcendo, repetindo e dissolvendo-se em estática. A incorporação de crepitações, estalos e assobios dos discos de vinil adiciona uma qualidade táctil à música, fazendo-nos mergulhar num tempo passado.

Ao longo dos estágios de “Everywhere at the End of Time”, vários temas principais emergem. O projecto explora intimamente a experiência da perda de memória e declínio cognitivo, capturando a natureza desorientadora de memórias que se esvaem e o turbilhão emocional que o acompanha. A doença progride, evocando um sentimento de pavor existencial e o medo do próprio declínio inevitável. A música também convida à reflexão sobre a passagem do tempo e a natureza efémera da existência, levando a contemplar a natureza fugaz das experiências humanas.

A música de “Everywhere at the End of Time” tem um profundo impacto emocional. Através das melodias, texturas distorcidas e estruturas desconexas, evocam um conjunto de emoções, da melancolia e nostalgia e até mesmo confusão e desconforto. A repetição e a degradação dos motivos musicais reflectem a natureza cíclica da perda de memória, provocando uma sensação de frustração e desespero. Às vezes, a música cria uma atmosfera inquietante, evocando um sentimento de ansiedade existencial e introspecção.

“Everywhere at the End of Time” esteve no centro da controvérsia quando transformado em desafio na rede social TikTok, onde alguns jovens descreviam experiências extremas. O músico veio afirmar que não teve problemas com a tendência, “O facto de ter sido transformado num desafio por alguns ouvirem esta obra na íntegra é uma reação a uma necessidade de experiências e experiências compartilhadas que caminham de mãos dadas com os tropos das redes sociais modernas”. Acrescentando que não sentia que os vídeos do TikTok estavam a “desrespeitar a obra” de forma alguma. “Acho que qualquer coisa que possa permitir a consciencialização, abrir uma discussão e dar às pessoas alguma empatia com pessoas e familiares que sofrem de Alzheimer e demência, especialmente entre os jovens, é uma coisa boa”, escreveu.

Aclamado pelos méritos artísticos e pela abordagem inovadora, críticos e fãs elogiaram a ousada exploração da memória, a capacidade de evocar emoções profundas e a estrutura conceptual instigante. Muitos elogiaram a atenção meticulosa de Kirby e a sua capacidade de criar uma paisagem sonora que é ao mesmo tempo, assustadoramente bela e intelectualmente desafiadora.

O projecto foi também elogiado pelas qualidades imersivas e catárticas, com alguns críticos a descreverem o trabalho profundamente empático que provoca compreensão para com aqueles que sofrem de demência e para com os cuidadores.

Alguns criticaram “Everywhere at the End of Time” por explorar o sofrimento de doentes de Alzheimer e dos seus cuidadores, levantando preocupações éticas quanto ao uso de uma doença degenerativa como inspiração artística.

Do ponto de vista clínico, o neuropsicólogo Hervé Platel, especialista nos efeitos da música no cérebro, considera que “a abordagem é interessante”. Hervé Platel vê como uma tradução bastante fiel do que sabemos sobre a jornada emocional de um paciente de Alzheimer ou outra demência. No entanto, adverte que a abordagem de Kirby tem as suas imperfeições. Em particular, dá a impressão de uma degradação total e unilateral da memória, enquanto a realidade é bem mais complexa. “É uma representação familiar onde imaginamos que é uma doença que altera todos os mecanismos de memória (mas) não é”. Isto porque os pacientes com demência também são capazes de reter novas melodias, mesmo que rapidamente se esqueçam do próprio processo de aprendizagem. “Os pacientes mantêm a suas memórias musicais, apesar do curso da doença», diz Hervé Platel. “Em última análise, não há perda de memória musical.”

Importa referir que, após o diagnóstico de demência, acontece por vezes que a pessoa consegue, e quer continuar a tocar o instrumento musical que sempre tocou. Importa valorizar esta vontade em detrimento do desempenho. 

Será que quando perdemos a memória perdemos a nossa identidade social? Deixamos de ser uma pessoa para ser apenas um doente de Alzheimer? Se quando não sabemos onde deixamos o carro num parque de estacionamento, num qualquer centro comercial, experimentamos uma sensação imediata de ansiedade, qual será a sensação de não reconhecer a pessoa com quem estamos casados há várias décadas? “Everywhere at the End of Time” talvez não nos permita em seis horas experimentar o que vive um doente com demência. Nem tão pouco responder a estas questões. Mas sendo a musical uma forma muito particular de acesso ao nosso eu, permite-nos questionar. Questionar como reagiríamos, ou não, a uma situação de hipotética falta de memória. Questionar como lidamos com quem está a nossa volta e está a passar por uma situação de demência. E permite-nos também colocar no lugar do cuidador, que ficou esquecido entre as memórias que se perderam. Vai dar também possibilidade a esses cuidadores para eles próprios recordarem situações, pessoas, momentos e reviver emoções. Um conjunto de recordações que são activadas de forma exponencial pela música e o seu potencial em cada um dos estágios. Este álbum permite ainda despertar consciências. Até hoje não existe cura para o Alzheimer. O diagnóstico é essencial e permite prolongar a qualidade de vida dos doentes. Uma recente entrevista da BBC, refere que a doença de Alzheimer afecta cerca de 3,9 milhões de pessoas em todo o mundo com idades entre 30 e 64 anos, o que nos leva a reflectir sobre a importância das investigações cientificas que procuram tratamentos e curas.

Em suma, “Everywhere at the End of Time” é um testemunho do poder da música para explorar as profundezas da experiência humana.

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Antigo Acordo Ortográfico
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