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Esqueci-me que te tinha esquecido

A tua sombra era gigantesca. Agora posso dizer que, nesse primeiro dia em que te vi, a tua sombra era tão gigante quanto a escuridão que escondias dentro de ti. Só te vi porque me tocaste sem querer: estavas encostada a um muro, absorta, e a tua sombra tocava os meus pés. Lembrei-me de várias contos infantis – meninos sem sombra, gigantes em nuvens – e deixei-me cativar por memórias inocentes.

Não sei porquê, tive a certeza que tinhas em ti uma felicidade infantil. Mesmo que o teu olhar estivesse longe e as tuas sobrancelhas preocupadas; mesmo que mordesses o interior da tua bochecha e que a tua expressão só mostrasse perigo e complicação: eu tive a certeza que vi em ti inocência.

Encostei-me ao teu lado. Olhaste-me sem interesse e sem me veres, distraída. Eu vi-te um sorriso nos olhos e entendi tudo errado. Mais tarde confessarias que nem te lembravas de ter olhado para mim, que nunca gostaste de mulheres, que nem sabias o que andavas a fazer comigo. Doeu-me, mas era um hábito teu seres dura com a verdade.

Não me quero lembrar como acabámos no meu quarto, foi o ponto de onde não consegui retornar. Deixaste-te beijar, mas nunca me devolveste sequer um olhar, uma carícia. Assumi-te com cicatrizes cruéis e tentei curar-te com tudo o que tinha, mas suspeito que só te tivesses deixado ir. Demorei muito até perceber que as gavetas da tua alma se equilibravam entre fechadas à chave e completamente desarrumadas, com tanto ou tão pouco dentro que eras incapaz de olhar. Por isso, deixavas-te ir e não fazias perguntas. Deixavas-te ir como quem roça a epiderme mas não mergulha com medo de se afundar. Deixaste-te ir e eu entendi errado – talvez estivesses carente e com falta de interesse real. Nunca te perguntei, com medo de todas as tuas verdades venenosas. A culpa foi também minha.

Um dia, chorei de dor. Chorei ao ter de enfrentar a tua loucura e a minha também: o meu engano, o meu erro, a mentira que eu me contei durante aqueles meses. Chorei e parti pratos. E quando apareceste de novo, com a tua expressão indiferente de quem só me sugava energia, expulsei-te. De uma vez. Disse-te que, se era para ires embora, não era para ires aos poucos. Não queria que ameaçasses ir como quem afinal fica. Não era para ires e depois voltares. Não queria mais um Depois. Depois do difícil, quando o amuo já passou e já te afastaste do que é preciso resolver mas nunca fica resolvido – porque eu te peço para voltares. Depois do que eu digo que temos de mudar mas permanece igual porque tu não mudas e eu só te quero, mesmo sem me amares, mesmo que ficássemos coladas ao que já éramos. Mas tinha-me cansado. Tinha-me cansado da solidão, da saudade, do medo, dos restos podres do que pensei ser para sempre. Afinal a inocente, a infantil, era eu.

Fiz todo o drama a que tinha direito. E do teu lado, não recebi um olhar. Disse-te para ires embora e tu foste, obediente pela primeira vez. Viraste-me costas e desceste as escadas do meu prédio, com toda a postura de quem não precisava de voltar. Sem luta, com a mesma indiferença com que tinhas chegado à minha vida e que tanto me tinha custado perceber.

Quando te vi hoje, bem vestida e a rir à gargalhada, do braço de um homem absolutamente lindo, a esconderes nos teus olhos o passado e os restos da tua escuridão, esqueci-me que te tinha esquecido.

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