Esperança

O ano de 2016 não foi propriamente uma simpatia para o Mundo. O medo e a insegurança ganharam terreno e todos se sentiram ameaçados. Não há local seguro, olha-se para o lado com desconfiança e os vizinhos perderam o charme inicial. Andamos assustados e ao menor ruído a tendência é para nos refugiarmos no bunker mais próximo. Isto não é viver, é arrastar os dias sem sentido. Não o queremos.

Em termos musicais, a chamada foi feita para o David Bowie, Prince, Leonard Cohen, George Michael, entre outros. Ficámos mais pobres mas os seus legados permitem que matemos saudades e que os possamos eternizar. A musica serve para amenizar as situações, sobretudo as menos agradáveis. Ficam sempre próximos de nós e nunca os esqueceremos.

No cinema foram gigantescas as perdas: actores, realizadores, argumentistas, produtores, todos os tipos que envolvem a indústria. Sabemos que tudo tem um fim mas olhando, assim, de repente, ficamos com a sensação de que aconteceu tudo ao mesmo tempo. Fomos roubados em tanto!

Perdemos o Nicolau Breyner, o monstro do palco e dos ecrãs. Ironicamente, no último filme que vi com ele, Os Gatos Não Têm Vertigens, ele morria de forma brusca num momento de alegria, num baile. Para ele, penso eu, a vida terá sido sempre a rodar, a dançar e a espalhar alegria e felicidade, mas doeu como se fossemos amigos há muitos anos. Sinto falta dele, da sua alma grande e generosa que incendiava uma casa. Ainda falamos, de tempos a tempos.

Infelizmente, não foi só ele que recebeu guia de marcha. José Boavida foi logo em Janeiro e outros se seguiram como foi o caso do Francisco Nicholson. Faz parte da vida e é o fim. Estúpido mas real.  Já nos pertencem e ficamos cada vez mais desfalcados. Sobretudo, quando ainda são novos porque são atraiçoados pela vida. Morrer é mau seja de que maneira for. Não gostamos e com razão.

Porém, o mais grave são as perdas mais pessoais, aquelas que só nos pertencem, que são do nosso pequeno mundo. Este ano ganhei uma amiga, mas perdi-a da maneira mais cobarde que se possa imaginar. Eu acreditei sempre que ela ia conseguir ganhar a batalha mas o inimigo era muito mais poderoso e as armas dele mais fortes. A sério que acreditei que tudo se ia resolver, porque sou uma pessoa positiva e tendo a ver o lado bom das coisas. Estivemos juntas em várias batalhas e ela agora partiu. Ainda estou a digerir. Custa-me. Já não a vou encontrar naqueles corredores e não vamos rir do que não tem piada. Aperta-me o coração.

Os anónimos são mais importantes para aqueles que os conhecem, que sabem que existem. Se eu escrever um nome ou outro, que não seja mediático, ficam na mesma, sem identificarem a quem me refiro. No entanto, eles têm valor para quem convive com eles e para quem se preocupa a sério. É o caso dos que vivem nos mesmos prédios ou nas proximidades. Acaba por se estabelecer uma ligação que, na nossa cabeça, é mínima. Não é. E descobrimos isso da pior maneira possível.

Costumava falar com uma velhinha, muito querida, que era um doce. Aos poucos e, sem se dar por isso, entrou na minha vida, na dela e na de todos os que a conheciam. Tinha um ar tão engraçado que era impossível não gostar dela. A vida tinha-lhe levado o filho e os netos visitavam-na com regularidade. Gostava de ver o jornal apesar de ser analfabeta. Era curiosa e queria entender tudo, o IRS, o que se falava na televisão, o que ouvia no café. Não sei se alguma vez entendeu o que lhe dizia mas acenava com a cabeça.

Já fazia parte da vida de todos da zona, do café onde ia almoçar e do jardim onde se sentava a observar tudo. Era bisbilhoteira, claro que sim, mas inofensiva. Queria saber mas não retinha nada, como uma criança desatenta. Um dia não estava à janela, como de costume. Estranhámos. Já tinha embarcado para outras paragens. Foi uma facada para todos. O lugar onde se sentava, no café, ficou vazio e frio. Ainda se sente a sua presença e a falta que nos faz.

Contudo, ela foi só uma entre milhares que se foram e que deixam lugares vazios na nossa vida. O banco de jardim e a cadeira no café continuam a marcar a sua presença. Ela não está mas continua a fazer parte das conversas e do nosso dia. Uma velhota que era a avó de todos, que distribuía simpatia e que cativava todos. As janelas da sua casa estão fechadas mas a sua vida encerrou-se naquele local. É inevitável que a recordemos.

Continuamos a ouvir música, recordar o Bowie que nunca nos desapontava, a sonhar com o Prince, que nos olha de alto e a sentir, tão profundamente, com o Cohen. O Natal será sempre o último porque alguém deu o seu coração, como o George. São nossos velhos amigos e nunca vão de vez. Simplesmente não estão ao pé de nós mas acompanham-nos. Ouvi-los é saber agradecer e reconhecer o seu trabalho, é perpetuar as suas vidas e passar o testemunhos aos que chegam. O seu legado é pesado mas alivia a alma e faz-nos bem.

Os filmes continuarão a ser vistos por nós e pelos outros que ainda se vão estrear, vão deixar saudades, alegrias e tristezas mas ficam, existem e nunca se irão perder. As suas caras e vozes ficarão para sempre, os realizadores eternizam-e e as histórias repetem-se.

Um novo ano chega como uma folha em branco onde ainda se pode escrever tudo, sendo todo o espaço livre e as cores ainda estão intactas. Cabe a nós usar as tonalidades adequadas, os tons que nos servem e as aguarelas que queremos que permaneçam. É apetitoso o reinício, o renovar de um ciclo que pode ser tudo ou nada, conforme queiramos.

Olhamos para a janela da velhota e sabemos que já lá não está mas outros, agora, povoam e dão vida à casa, ao espaço que se renova e rejuvenesce. A amiga partiu, mas nunca será esquecida e, quando a dor assim o permitir, poderei sorrir de tudo aquilo que ela me disse, relembrar as conversas e nunca esquecer a sua força e vontade. É isto a amizade, o resíduo que nunca se apaga, mesmo de quem se foi. Estarão sempre no meu coração.

É Inverno, mas temos que pensar que a Primavera está próxima, que tudo voltará a renascer, que o gelo irá derreter e que as folhas voltarão às árvores e, mais tarde, haverá flores e frutos. É incessante este movimento que não permite que se estagne, que impele a continuar e faz com que se avance. A vida renova-se a cada instante, a cada momento e nada será como anteriormente, porque cada momento é único. Porém, o movimento não pára e o mundo continua a rodar como uma girândola.

Perder faz parte do jogo de ganhar. Perdemos alguém que nos é próximo mas ganhamos força para avançar, força para entender que devemos continuar, que  a vida se desenvolve em ciclos repetitivos e dolorosos. A dor faz parte da vida e é uma componente muito importante. Custa tremendamente, mas dá equilíbrio e espírito de sacrifício. São testes constantes que a vida vai fazendo. De surpresa.

O que se segue, aquilo que está para acontecer é que interessa. O que ficou é uma lição que deve ser aprendida e meditada. Nada é em vão e tudo tem os seus motivos e razões. Por isso, devemos olhar para a frente e entender que somos donos da nossa vida, que a podemos manobrar e que as escolhas que fazemos são da nossa responsabilidade.

Devemos apostar em nós, sermos conscientes e responsáveis, ser aventureiros e tentar ir sempre mais além. Só se vive uma vez e devemos saber aproveitar ao máximo. Os dividendos serão nossos e esses ganhos terão outro valor, mais forte e mais potente. Somos poderosos e tudo está nas nossas mãos! Olhamos para trás e retiramos as lições mas sabemos que o caminho é em frente e que de nada valem as lamentações.

Caímos mas com estilo, levantamos com mais força ainda, contornamos os obstáculos e sabemos que somos vencedores. As aranhas irão continuar a tecer as suas teias mas somos visionários o suficiente para não nos deixarmos apanhar. Abrimos as asas e voamos até onde pudermos ir e aí, nesse local, teremos altura e discernimento suficiente para poder avaliar tudo aquilo que fomos, o que agora somos e aquilo que queremos ser.

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