– Onde posso carregar o telemóvel, João?
– Acho que não vais precisar.
– Não estou a entender!
– Pai, pai, não há rede, pai…
– Onde está a tua irmã?
– Anda à procura de rede.
– Cláudia, eu disse que este sítio era diferente.
– Queres dizer que…
– Sim, lamento dizer-to, mas aqui não há mesmo rede. Foi por isso que escolhi a Quinta da Família, para este fim-de-semana.
– Não acredito, e agora? Tenho que ver os e-mails de França, estamos a fechar um negócio!
– Não quero ficar aqui e a Maria também não. Mãeeeeee
– Ah e também não há televisão!
‘’Devemos reanimar a comunicação na família’’, esta frase fez parte da última homilia de 2019, do Papa Francisco. Pertinente, despertador de consciências, o apelo do Sumo Pontífice, não deverá deixar ninguém indiferente. Poderemos dizer que a existência humana se partiu em duas, com o aparecimento dos telemóveis. Quem ainda se lembra da vida, na ‘outra’ Era? Não, não foi há muito tempo, não senhor!
Os primeiros telemóveis em Portugal, surgiram no final da década de 80, do século XX. Contudo, o que está realmente a mudar? Há poucas certezas, menos ainda, verdades absolutas, mas julgo que não se pode duvidar, que a MUDANÇA, é o que de mais certo temos. Ainda que nos tentemos colar ao passado, como se lá, se tivessem instalado todas as virtudes de uma vida plena, o avanço do mundo é movimento constante, que nos leva a todos, numa viagem sem retorno.
Serão as famílias de hoje, sombras nubladas, irremediavelmente longe de qualquer virtude?
Os fortes laços de amor e companheirismo, tornaram-se mais ténues, mais superficiais. Talvez possa chocar, esta visão, talvez toda esta metamorfose recente seja resultado de uma sociedade que se deixou atingir por demasiados pólos de atenção. Estamos em todo o lado e em lado nenhum. Queremos absorver toda a informação que nos rodeia, e acabamos perdidos, num lamaçal de conhecimento, sem filtros.
A massificação do uso do telemóvel, veio toldar-nos os dias. Que não restem dúvidas! Janelas com vista para muitos mundos, que seguramos nas mãos e se colam firmemente à pele. Para muitos, arrisco a afirmar, que se tornou uma extensão do corpo e do ser.
Adormece-se depois de verificar as mensagens e as redes sociais. Dorme-se com o aparelho à cabeceira, em jeito de anjo da guarda. Acorda-se e logo se recomeça na pesquisa dos ‘likes’, de novas mensagens, de novidades… Enfiamos o telemóvel no bolso das calças. Não se pode correr o risco de perder alguma notificação.
E pedimos quase de joelhos para nos validarem as inseguranças e assim vamos canibalizando a própria privacidade.
Nos telemóveis, nos tablets, começam-se relações, descobrem-se traições, acabam-se namoros. Usam-se as redes sociais para fazer públicas e acesas declarações de amor. Publica-se fotografias fofinhas do cão e do gato, partilham-se noticias e muitas, muitas indignações. As redes sociais são máquinas de lavar em formato gigante. O que se lava de roupa suja!
Tudo seria legítimo, não fosse o facto de estarmos a esquecer o contacto humano real, o toque, o olhar, a conversa, a coragem de enfrentar o alvo das palavras. Sim, há casos em que casais mal falam entre eles e, no entanto, agem nas redes sociais, como se estivessem a viver paixões avassaladoras. Pintam-se vidas reais de rosa choque, em nome da aparência e da pirraça. Exibem-se marcas e lugares de luxo. Sim, sim, eu frequento sítios finos, sim, sim, estou muito bem na vida…
O mundo cabe todo naquele ecrã de 10×6, como se a realidade fosse um lugar desinteressante, ou então…um monstro com muitas cabeças, que perdemos a coragem de enfrentar. A vida passou a ver-se por de trás de um telefone, tal não é a fúria incontrolável de mostrar onde estamos, com quem estamos. A paisagem é linda, ali escarrapachada no Instagram, linda. Contudo, olhamos para ela com olhos de ver? Respiramos daquele ar? Bebemos o seu colorido? Sentimos-lhe o aroma?
O que andamos a perder? Deixámos escapar a capacidade de estar aqui e agora. Assustador. Vive-se numa bolha de aparências, com os pés a escorregar para o planeta do ‘Faz-de-conta’. Com certeza não queremos este suicídio para nós, mas estamos passivamente a enterrar-nos num lodo manipulador.
Teremos talvez dificuldade em aceitar que estamos a ser usados. É compreensível, porque achamos sempre que temos tudo controlado. Só que não. A pegada que deixamos entre as muitas pesquisas que fazemos, são avidamente consumidas e digeridas por entidades que querem dados para ganhar dinheiro, influência e até votos.
Se pesquisamos sobre um determinado assunto, somos atingidos, por anúncios relacionados sem dó, nem piedade. Esta pode ser, uma poderosa arma para nos conduzir os hábitos de consumo, mas mais grave, para nos moldar opiniões e tendências. São eles os algoritmos, que nos vigiam 24 horas por dia, sempre atentos, a todos os detalhes.
Se só lermos artigos de opinião de quem pensa como nós, somos levados a fechar o leque de opções e corremos o risco de viver, com duas palas nos olhos. Perdem-se horas a partilhar notícias falsas e vídeos manipulados. Emitem-se opiniões sem se tentar perceber, a veracidade do que acabamos de ler. Quem não recebeu já noticias com vários anos no papel de coisa acabadinha de acontecer?
O pensamento livre está em perigo!
Facebook, Youtube, Instagram, Whatsapp, Linkedin, Pinterest, Twitter, Snapchap, Tumblr e Twitch. Foram estas as redes sociais com mais seguidores em 2019. Na outra ‘Era’, o álcool e as drogas, dominavam a lista dos vícios mais perigosos. Agora, a estas dependências, vieram juntar-se outras patologias. Namofobia foi o nome dado à dependência do telemóvel, para deixar aqui um exemplo.
‘Como bola colorida, entre as mãos de uma criança’. E se o grande António Gedeão, reescrevesse agora a sua ‘Pedra Filosofal’? Trocaria a palavra bola, por ‘telemóvel’?
Nascem com uma apetência para tudo o que seja tecnologia. Cai-nos o queixo, ao ver os nossos ‘bebés’ mexer em qualquer telemóvel, com destreza intuitiva. Dominam a máquina e assim, se vão viciando inocentemente. Existe uma pressão social imensa, à volta da necessidade, cada vez mais precoce, dos meninos estarem contactáveis. O telefone é prémio para bons comportamentos. “Se chegares ao ‘Quadro de Honra’, os avós oferecem-te um telemóvel, igual ao do André!”
Compra-se o sossego e o silêncio das crianças, à mesa do restaurante, com jogos no tablet. Troca-se um passeio de bicicleta por uma tarde a olhar para ecrãs. E de que serve qualquer advertência de contenção, se os pais estão a dar o sermão de telemóvel nas mãos?
Como filtrar eficazmente o que os ‘nossos’ putos vêem? Quase impossível. Não há tempo e, por mais regras que sejam criadas, há sempre escapatória. Os perigos são imensos e, no entanto, achamos que estão mais protegidos, se estiverem ali em casa, em vez de andarem na rua, a correr atrás de uma bola.
Cyberbulling, pornografia infantil, obesidade, ansiedade, jogos de auto-mutilação e suicídio, dependência, isolamento social, depressão… os perigos que oferecemos como ‘prémio’ aos nossos filhos.
A legião de Youtubers que tanto atrai a pequenada e a adolescência é causa ou efeito desta globalização das comunicações? Não sei, acredito que seja um pouco de ambos. O que me assusta é a forma como conseguem milhões de fãs capazes de qualquer coisa, a troco de uma menção honrosa. Colocam-se sérias dúvidas sobre a capacidade dos adultos gerirem estas delicadas questões. É que eles são também parte viciada.
Claro que o acesso facilitado às novas tecnologias tem muito de positivo. Informação, mobilidade laboral, partilha, reencontros, formação, diversão, música, cinema, livros… Aproveitar o lado bom, sim, mas com os filtros sempre ativos. Se estivermos atentos, saberemos identificar e separar o ‘lixo’ que nos querem fazer consumir. É esta forma de estar, que devemos passar aos nossos pequenitos. Mais do que proibir ou castigar, temos o dever, de educar e proteger. Não devemos nunca esquecer, que é muito mais importante para eles, o que lhes deixamos como exemplos de vida, do que qualquer aceso discurso, oco de atos.
Acredito que o caminho do ‘meio’ seja aquele que devemos escolher. Aproveitar o lado bom e saber rejeitar o lado mau. A tecnologia deve sempre ser vista como ferramenta e jamais se deve pensar que pode substituir as nossas capacidades.
Apreciar um bom vinho pode ser sublime, mas, se transformarmos o ato de ingerir bebidas alcoólicas num hábito repetido, tornar-se-á num perigoso vício. Agora transponham esta frase para o uso das tecnologias e têm exatamente o que penso sobre este assunto.
Precisamos desintoxicarmo-nos de tecnologia. Nada nos impede de nos colocarmos estes ‘DETOX’ ciclicamente. Não precisamos de estar constantemente ´ligados’, para estarmos bem e sermos felizes. Devemos isto a nós e principalmente aos nossos meninos!
– Obrigado João!
– Obrigado? Porquê?
– Há quanto tempo, não tínhamos um serão tão divertido! Os miúdos adoraram.
– Por falar em miúdos, onde estão?
– A guardar os jogos nas caixas. A Maria ficou fã do Dominó.
– Como vês, sobrevivemos a um fim-de-semana inteiro sem tecnologia.
– É para repetir!