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Era tarde quando Adília aprendeu a dançar

Como se tivesse um glaciar preso na garganta. 

Aquela sentença, assim disparada sem cerimónia, gelou-lhe o corpo e o resto. Dois meses de vida, talvez menos. Não se regressa destas palavras. Abandonou o consultório, ensurdecida e engelhada.

Adília nunca soube pertencer. Um dia perguntaram-lhe nas finanças pela profissão: arrumadora de palavras deitadas em desalinho. O senhor funcionário público deixou que a ruga interrogativa da sua testa falasse, e então lá disse que era escritora, mas que odiava escritores, e que mais não fazia do que andar por aí a pé a colher palavras para falar de si. Para se silabar.

Olhava-se no espelho do quarto, ainda com a pele ferida de gelo. Analisava no corpo muito nu essa escultura de horror de que só o tempo é capaz. Mais dois meses de apodrecimento pela frente. Lembrou-se nesse momento de que, na Revolução Francesa, houve quem tivesse disparado contra os relógios das torres. Depois sorriu.

Com os anos, habituou-se a trazer-se por casa assim toda forrada de silêncio. Viveu sempre amuralhada, temendo (talvez repugnando) essa sua atração inevitável por mulheres. Nunca chegou, por isso, a encontrar quem com ela quisesse partilhar a solidão. Porém, essa falta de eco, esse excesso de nada, tornava-se agora insuportável. 

Não se sentia capaz de, sozinha, sacudir o pó desses dias tristes que lhe restavam.

Secretária, candeeiro, caderno preto, caneta — material reunido para a fertilização in vitro. A madrugada esfriava e Adília escrevia e rasurava. Arriscava-se na sua maior criação literária: uma personagem que lhe enchesse de leveza primaveril as últimas memórias, com quem pudesse olhar a manhã por dentro ou sentir a fruta madura desfazer-se nas mãos.

Dessa caligrafia noturna e doce, espécie de sussurro luminoso, nasceu Marianna.

Despontava — bonita, incandescente, insubmissa nesse ninho feito de palavras de seda, algumas de aço. Toda a ficção é uma tentativa de ampliação daquilo que se é. Mas Adília teceu aquela existência na exata medida do seu desejo. Um corpo de mulher com quem pudesse caminhar, dialogar, serenar, talvez foder.

Durante vários dias a vimos sentada à secretária, esboçando Marianna nessa prosa delicada e despida que a celebrizou no país literário. Desenhava-lhe os detalhes e os trejeitos, a pronúncia e o hálito, as memórias e os medos, as intenções e os pontos de fuga. Enquanto isso, apaixonava-se por ela.

É bonito esse momento em que a ficção, tantas vezes confissão, emprenha o real. Certa noite, Adília sentiu-se tocada na mão pela sua personagem. Como se a tinta tivesse passado a correr no sentido inverso, do papel para a caneta, da caneta para o córtex pré-frontal ou para a solidão, não se sabe bem. 

Como se tivesse uma fogueira presa na garganta.

Aquele toque, assim sentido sem lógica, inaugurou-lhe uma camada da pele que não sabia existir. Pela primeira vez, tão perto do fim, assistia a essa ébria fusão entre o mundo das coisas reais e o universo fantasioso onde sempre preferiu habitar. Trouxe Marianna pela mão, sentou-se com ela em silêncio. 

Os olhos de uma e outra ocupando o mesmo lugar. Sabiam-se, e por isso provaram-se, despiram-se e respiraram-se. Enchiam os pulmões como se começassem ali o mundo. Ao final de muitas horas, perguntavam-se quantas luas terá durado essa noite. Oscilante, alucinada, Adília aprendera, por fim, a dançar.

Passou os dias seguintes embriagada por esta comunhão. Partilhava com aquela mulher — mais real do que qualquer outra —  longos silêncios de quilómetros. Aprendia com ela a auscultar o coração das coisas, o seu compasso ritmado, a sua forma de sangrar. E por isso se sentia agora menos sozinha, menos amedrontada perante as questões sufocadas que sempre trazia, Que há depois, Até quando serei, Shakespeare terá sido uma mulher, E eu, que mulher fui.

Mas via-se desvanecer, o corpo apodrecendo. Todos os dias mais fraca, mais abandonada à doença. Precisava de preparar Marianna para a sua morte, ela que seria provavelmente a única presença no funeral. Ensinou-a então a vestir-se de tristeza, O preto assenta-te bem, ensinou-a a caminhar de tristeza, Se nesse momento ainda souber sentir, sentirei a tua falta. Dormiram nuas.

Na manhã seguinte olhou-se no espelho e percebeu, Olá Morte. Procurou Marianna pela casa, mas estava sozinha de novo. Pegou nas folhas de papel onde, nas últimas semanas, havia consumado em poema o tamanho da sua carência. Passeou-as uma última vez, teve saudades, queimou-as a seguir. Depois sentou-se, abdicou de si e chamou-a. Ninguém. Só aí se apagou.

O funeral aconteceu uma semana depois, não chovia. Nesse derradeiro momento terreno, o medo de Adília confirmava-se. Além de jornalistas, políticos, escritores, proeminentes intelectuais e centenas de leitores, ninguém compareceu. 

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