Ela não era ninguém, não realmente. Embora todos lhe reconhecessem o nome. Ela: quem se tinham habituado a ver sempre do braço dele. Ele: «o escritor do século» proclamavam os jornais; ele: «o poeta mais importante de hoje» diziam as legendas nas fotografias (ele em primeiro plano e ela como sombra dele). Todos invejavam aquela mulher que o inspirava, que – julgavam – compreendia o labirinto do seu génio. Todos lhe memorizavam o nome: Cleo López, La Bruja. Cumprimentavam-na, elogiavam-na, procuravam saber mais sobre ela na ilusão de que assim saberiam também mais sobre ele. Mas ninguém a conhecia, não realmente. Só o nome de encantamento. La Bruja era como ele a chamava porque se dizia embrujado. Dizia-o sempre, a quem o quisesse ouvir, e especificava: não é feiticeira, ele não estava enfeitiçado. “Estou embruxado, embruxado de verdade”, queixava-se, de sorriso nos lábios, piscar de olhos maroto e de costas para ela. Ela sempre atrás dele, oculta na sombra, escondida na expressão enigmática.
Vi-a uma vez sentada num comboio, no pico do Verão. Uma mulher suada e brilhante, de vestido leve, que parecia ter a vida na ponta dos dedos. De aparência jovem, mesmo com rugas de volta dos olhos e dos lábios. Reparei porque havia nela uma tristeza tão bonita e uma liberdade tão pesada. Não a identifiquei – ela não estava de braço dado com ele. Só quando o seu nome apareceu no jornal e a deram como desaparecida é que me lembrei de que a tinha visto, sozinha num comboio nocturno, livre e triste e com o mundo aos seus pés.
Olhei para o jornal e li enquanto tomava o pequeno-almoço. Na imagem, ela estava sentada no sofá e olhava sorrateiramente para nós, que a espiávamos do futuro. Soprava o fumo de um cigarro. Havia algo de irreal e sensual nela. Era a personificação da musa, alguém imaginado e inspirador. À sua frente estava uma pequena mesa com um jarro de flores minúsculo, um cinzeiro com beatas, duas chávenas e os restos do que parecia ser uma linha de coca. “Onde está La Bruja?” perguntavam os títulos. Ao lado, uma fotografia actual dele tirada ao longe, óculos escuros que disfarçavam o pesar e a expressão corporal perdida. Faltava-lhe uma parte do corpo. Ali estava amparado por duas ou três pessoas, mas nem parecia ele, parecia um invólucro vazio. “O sofrimento do escritor” anunciavam as legendas.
O jornal dizia que tinha sido vista por última vez sexta-feira de manhã. Pensei na viagem longa daquele sábado. A mulher sentada no banco à minha frente. A ler um livro; a olhar pela janela; de olhos fechados. Quando chegámos à estação final, sorrimo-nos. Éramos companheiros de viagem a chegar juntos ao mesmo pedaço de destino, o equivalente a partilharmos um segredo, uma experiência só nós dois. Esqueci-a ainda a caminho do hotel.
Hoje, sete anos depois, os títulos do jornal são diferentes: “La Bruja: a ruína do grande escritor.” O olhar louco dele ameaça-nos e desafia-nos do papel. Da ultratumba. Uma das últimas fotos. Não haverá mais: o grande escritor está morto.
Ele deixou de escrever para procurar o seu pedaço desaparecido. Eu ia seguindo a história com curiosidade. Via os programas de televisão em que ele era entrevistado, mais magro a cada semana que passava, de olhos encovados e boca pesada, língua inchada, quase sem conseguir falar, como se não conhecesse palavras ou letras ou sequer realidade. Explicava que a procurava exasperante e desesperadamente, que tinha contratado os melhores detectives. A voz desolada prometia novos livros quando a sua inspiração retornasse, talvez um romance de mistério – sim, talvez fosse assim que contaria a verdadeira história daquele mal-entendido. Era um mal-entendido, só podia, ela não estava morta nem raptada, quiçá perdera a memória, quiçá brincasse com ele – “volta, querida, não brinquemos mais”. A chorar, a babar-se, a limpar o ranho com a manga de camisolas que não eram lavadas há muito tempo, que se assemelhavam até a pijamas, oferecia todo o dinheiro que tinha.
As pessoas tinham pena, pregavam os olhos no meio de comunicação que anunciasse o nome dele, levavam as mãos ao peito inquieto, cheias de compaixão, enquanto ele explicava que não podia viver sem ela. Fantasiavam que eles viviam uma tragédia de amor, compravam mais livros dele. Algumas não conseguiam conviver com aquele sofrimento televisado, informado, explorado, arrepiavam-se. Outras, por vezes, sem admitirem – além de um breve desvio de olhos e a boca contorcida –, sentiam vergonha alheia. Eu nunca contei a ninguém que me tinha cruzado com ela. Talvez tivesse que ver com querer guardar aquele mistério só para mim. Ou com o alívio que lhe notei no corpo. Ou com as nódoas negras que lhe marcavam os pulsos. Mas acompanhei a procura dele, escutei as conversas e opiniões, enterrei o meu segredo.
Acompanhei-o até também ele desaparecer.
A dúvida, entre a loucura e o silêncio. A perda de um herói, um génio. As lágrimas: uma história sinistra, só dois anos depois dela, talvez se tenham suicidado, talvez ele tenha encontrado alguma pista fatal e não tenha aguentado, que desgosto. O luto; os livros que começavam a chegar às livrarias sobre aquele amor que chamavam maldito; os replays das aparições deles, felizes e jovens, e depois ele, dilacerado pela ausência dela; as entrevistas a vizinhos; os segredos que afinal existiam e todos juravam saber, que surgiam de “fontes próximas”. O nome deles a ser sinónimo de desesperança. Finalmente, o esquecimento.
Voltou a aparecer três anos depois, numa esquadra da polícia, mal-cheiroso, cabelos que pareciam arrancados, sem dentes e de olhos brilhantes. Os gestos nervosos de um viciado. Queixou-se que um gato preto o seguia. Os polícias tentaram acalmá-lo. Confessou que não aguentava mais aquela dor: tinha assassinado La Bruja e agora ela mandava gatos pretos seguirem-no, vigiá-lo, aproveitar a primeira oportunidade para o matar. Estava amaldiçoado. Os polícias entreolharam-se. Maluco, possivelmente, ou drogado. Por respeito e pena, decidiram não ignorar: pediram que ele os levasse ao lugar do crime, e chegaram à cozinha de uma casa noutro país, cheia de sangue já seco. Não havia corpo, a casa estava em nome dele, o ADN do sangue era de felino.
“O sangue é de gato, é dela!” berrava com a voz aterrorizada. “Eu encontrei-a”, jurava. “Matei-a”, abanava os polícias e chorava de aflição. Ao longe, um gato preto observava-o.
Alguém o encontrou morto no início deste ano. Havia uns dias que tinha morrido, adormecido numa caixa de cartão num beco perigoso, sozinho com a chuva e o frio. Durante dois anos foi raro ouvir-se falar dele. O herói perdido. Desculpavam-lhe a loucura, era típica de génio, mas não aguentavam vê-lo como um simples humano, entrando e saindo do hospital, falando sozinho pela rua, deambulando entre cidades, esquivando-se de gatos. Embrujado, diriam.
Ontem pareceu-me vê-la. Descia uma rua na minha cidade, na cidade dela, na cidade dele. Parecia pisar a calçada com fúria de viver, nas ancas o movimento desafiante que tinha a expressão das suas fotos. Os óculos escuros gigantes escondiam-na. Parou quando me viu e sorriu. Depois, continuou o seu caminho, de costas, a afastar-se. Atrás dela, um gato preto. Foi um segundo. Apenas um segundo. Companheiro de viagem e guardador de segredos, pareceu-me que diziam os seus lábios. Não me voltei a esquecer daquela mulher. Reconhecê-la-ia em qualquer lado.