Estava em pulgas e não consegui pregar olho a noite toda. Já passava das 8h30, quando saí de casa. Revi mentalmente a lista de coisas para a viagem. Tudo certo. Também qualquer coisa, estou em Portugal. Cheguei, sem saber o que esperar. Não sabia como me apresentar, qual deveria ser a minha postura. Sacudi o medo e entrei.
Estavam os três à minha espera. Ele vestia roupa de ginástica, o que me deixou confortável; elas sorriram e estranharam a minha pequeníssima bagagem. Desculpei-me pelo atraso e fiquei a matutar onde estaria a mãe. Queria perguntar qual era o plano, mas o meu pensamento ficou na falta da presença de um membro da família que eu queria muito conhecer. Talvez estivesse lá para dentro, talvez não pudesse estar com as visitas, talvez tivesse ido às compras. Todos os preconceitos e pensamentos discriminatórios passaram pela minha cabeça. Afinal, tinha à minha frente parte de uma família muçulmana e as razões poderiam ser bem diferentes do que eu estava à espera.
E foram.
Deixaram-me à vontade, na sala, enquanto preparavam o almoço que só ficou pronto já passava das 15h. Mas os Egípcios são assim, comem quando têm fome. Horário de refeições não é propriamente um requisito no quotidiano. Muito menos quando estão de férias.
Folheei os livros em cima do sofá, quase todos subjugados a um tema: como ter foco e sucesso. Curioso, pensei. Entrei na cozinha umas quantas vezes, sem me preocupar com o que estaria a ser cozinhado. O Egipto e as suas iguarias tinham-me conquistado em 2013, por isso não tinha qualquer motivo para alarme. Queria meter conversa, mas ainda não tinha encontrado o ponto-chave que me permitia estar à vontade para perguntar tudo o que me passava pela cabeça. Não tinha sacudido o medo todo quando entrei.
Sentei-me na mesa já posta: a faca foi substituída por uma colher e não havia toalha. Na travessa panados em forma de palito muito saborosos, com ervas aromáticas, massa com molho de tomate e uma salada de pepino. Típico.
Mergulhei de cabeça: o que é que estão realmente cá a fazer?
Estamos a viajar por Portugal, enquanto aprendemos a língua para nos tornarmos cidadãos portugueses. E que melhor maneira existe para aprender uma língua do que ter um nativo connosco e viajar pelo país? Nenhuma aula de Português nos iria enriquecer tanto como estar no país, ouvir a língua, os gestos, as expressões faciais, a forma de estar e viver. É por isso que aqui estamos.
E assim começou a minha aventura em Portugal. Sob a perspectiva de três pessoas de outro país, com outros costumes e crenças.
Em Portugal, não há pessoas com cabelo aos caracóis? Ainda não encontrei ninguém.
Há, pois. Aquela não era uma viagem qualquer. Era uma viagem de auto-descoberta, para mim e para eles.
Começámos no Porto, com palavras básicas, verbos essenciais, pronomes, cores, números e expressões terminantemente repetidas. Cedo avançamos para frases completas e à noite, quando não havia televisão para ver, percorríamos as conjugações verbais. Avançamos também para Aveiro, a cidade que lhes ficou na memória. As cores, a ria, a calçada portuguesa, as ruas entrelaçadas.
Aos poucos, também eu aprendia sobre o islão e as inúmeras incongruências na sua interpretação, sobre a forma como aquelas pessoas encaravam o mundo e interpretavam as diferentes formas de vida deste país sossegado e em paz. Enalteceram o clima ameno, as diferenças na paisagem, a profundidade e angústia dos portugueses incorporadas nos seus gestos, as condições que o país oferece em termos de saúde e educação, o turismo em alta e a qualidade de vida nos centros urbanos. Isto, claro, comparando com o que lhes era familiar: um Cairo caótico, poluído, desigual e, ainda assim, belo.
As conversas foram avançando e de repente deixou de importar a razão pela qual a mãe não estava naquela viagem. Deixou de importar o almoço servido às 17h00 ou as viagens de carro intermináveis a ouvir podcasts sobre a força interior e o poder da resiliência. Avançámos para os testes escritos, coisas simples já depois de termos passado por Óbidos e Caldas da Rainha.
Na viagem de carro começaram as dúvidas: há palavras com uma sonoridade quase igual, mas com significados diferentes, como “perto, preto, prato, porta”, como é que podemos distingui-las? Boa questão. Nem eu me tinha apercebido disso.
Chegamos a Lisboa. E chegamos também ao fim das aulas noturnas. Dei descanso às expressões repetidas e apresentei-lhes às perguntas básicas de sobrevivência: Onde é o metro? Quero dois pães! Quanto custa? Obrigada! Por favor.
Lisboa era para eles uma cidade tranquila, bonita e airosa. Sentiam-se bem ali, na rua do Ouro, tão perto do rio e da multiculturalidade que a cidade transpira. Tão perto do que, para eles, é ser português, tão perto da normalidade que eles tanto procuram e de um futuro que lhes assegure o bem-estar. A história de Portugal e a actualidade inspiravam-lhes confiança. O turismo parecia agradar-lhes.
Tinham estudado bem o país e as vantagens da cidadania. Há 10 que o andavam a fazer: percorreram o mundo à procura de um país no Ocidente que lhes agradasse; estiveram quase a estabelecer-se no Canadá, mas o frio do Inverno não foi convidativo. Chegaram a Portugal e sentiram que aquele seria o sítio certo, só precisavam de ver como viviam as pessoas e depois tomariam a decisão. Assim foi.
Porquê?
Porque na iminência de um conflito entre o Ocidente e o Oriente, quero que a minha família tenha o melhor dos dois lados. E num desses lados está Portugal.
Em Lisboa, couberam todas as questões sobre a língua portuguesa, sobre o passado e o presente. Deambulamos pelos sinónimos, pelos espaços físicos e profissões. Eu deixei-me levar pelas mudanças no Egipto, o acto de bondade intrínseco ao Islamismo, o feminismo e os direitos humanos num país tão rico e tão pobre. Descemos as ruas de Alfama, percorrendo novamente as cores, as peças de vestuário e os objectos do dia-a-dia. Faltou Belém e os pronomes possessivos. Faltou um país inteiro de costumes, gastronomia e expressões idiomáticas.
Fica para a próxima, em 2020.