Em cada esquina uma obra de arte

Sabemos que a vontade de criação é intrínseca ao ser humano. Alimenta-nos a alma, o ego e a esperança. Criamos para expressar o que sentimos, o que pensamos, o que sonhamos, o que não queremos imaginar, o que imaginamos, o que gostaríamos de ser. Enfim, criar é uma forma de extensão de nós próprios. Como se o objecto ou obra à nossa frente fosse uma continuação de nós mesmos.

O acto de criar é, em si, belo. Depositamos todo o nosso ser, todas as nossas experiências, crenças e vontades num único objecto ou obra. Este, contudo, pode suscitar diferentes percepções e emoções. Pode valer pelo que é, pela sua beleza intrínseca, pelo que o criador pretende transmitir ou pela forma como que o receptor a recebe e entende. No entanto, seremos todos capazes de criar arte?

Escreve Marcel Proust, no seu breve ensaio “Sobre a Leitura”, que quando fechamos um livro ele termina apenas para as personagens. Para nós, pelo contrário, a história continua, na nossa mente.

E quão injusto é não sabermos o que aconteceu àquele personagem, cujo autor, dedicou páginas e páginas a descrever o seu sofrimento?; o que terá acontecido aos habitantes daquela aldeia isolada e bela tão deliciosamente descrita?; como é possível desligarmo-nos, com o fechar abrupto da contracapa, de todas as emoções e vivências partilhadas com aqueles personagens que nos acompanharam no livro, durante dias, semanas, meses? É suposto esquecermos e seguirmos a nossa vida? Melhor dizendo, vivê-la? São estas e outras questões que Proust coloca neste aclamado elogio à leitura. Questões pertinentes e que nos ajudam a reflectir sobre o momento de criação, a imaginação e a arte, o engenho da escrita e o prazer da leitura. Por outras palavras, o momento de criação como um acto de beleza para o criador e o leitor.

Estamos conscientes de que os escritores fazem das suas personagens o que bem entenderem e, por conseguinte, nos guiam como se fossemos uma marioneta. Sentimos o medo das personagens, aquecemos o espírito com a descrição de um amanhecer – que existe apenas na nossa mente – tão pitoresco e belo. Vibramos com os problemas e frustrações dos personagens. No início, desconfiamos de tudo e de todos, mas, no final, já somos conhecedores de todos os desejos, sonhos e defeitos daqueles personagens, que é como quem diz: ficamos amigos. É uma arte!

Através das palavras, sentimo-nos parte da história das personagens, como se fossemos também uma personagem, que não fala nem comenta, apenas está lá, observa e sente. É uma habilidade tão engenhosa que ficamos abismados com o poder das palavras, a criatividade e imaginação e a fluidez que a escrita impõe, para sempre, na nossa memória.

No entanto, é um livro uma obra de arte? Qualquer livro? Talvez não. Também eu posso escrever um livro? Sim. Pode ser considerado obra de arte? Depende.

Nem todas as formas de escrita são obras de arte. Nem tão-pouco a habilidade de um escritor o é. Há coisas que sabemos que o são, porque é assim que nos apresentam. Crescemos a saber que os quadros Picasso, as esculturas de Auguste Rodin, a música de Beethoven, os bailados de Tchaikovsky, as direcções de Godard, as peças de Beckett, são verdadeiras obras de arte. Conhecemos as peças que, desde sempre, nos apresentaram como obras de arte e estão bem guardadas e preservadas nos museus. E com que premissa? O que é arte? Que aspectos tem uma obra que ter para ser considerada arte? Pela genialidade do seu autor? Pela autenticidade das suas obras? Pela criatividade dos seus materiais? Pela influência e impacto numa determinada sociedade? Pela beleza intrínseca do objecto em si? Pela harmonia? Pelo que desperta no espectador? Pelas ideias que comunica? Talvez seja por tudo isto, mas pode também haver mais. Porque a nossa compreensão é subjectiva: a forma como adquirimos conhecimento, como apreciamos e entendemos a realidade varia de acordo com as nossas experiências, crenças e cultura.

E, portanto, a forma como entendemos a arte está inteiramente relacionada com a subjectividade do indivíduo e da sociedade enquanto um todo. Por isso, da mesma forma que existe subjectividade em estabelecer um ponto de equilíbrio e que define na sua plenitude uma obra de arte, também essa subjectividade existe na sua criação.

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