Ele olha para a Lua e sonha

Ele olha para a Lua e sonha. Não conhece ainda a história que o construiu.

Ao lado, o pai ressona um sono inquieto. O cansaço prende-o à cama. Às vezes, diz palavras numa língua que o miúdo não percebe, geme baixinho. O suor brilha na luz da noite, até durante o Inverno, e parece que está coberto de diamantes.

Um dia, trocou o medo pelo mar. Era época de monção, mas não choveu antes de ele ir embora. Não conseguiu despedir-se da sensação dos aguaceiros quentes a cair no corpo, do cheiro a petricor. Não fazia mal: sentiu que era um sinal de que voltaria à sua terra. Nos últimos dias decorou cada nota do riso das irmãs pequenas, cada brilho no olhar magoado da mãe, cada toque dos amigos, da família, da terra, cada racha na parede da casa velha.

Ia mandar dinheiro para consertar a casa. Para fazerem frente à falta de trabalho, à corrupção, à iminência de uma guerra, à fome, ao medo da pilhagem. Para não aceitarem a mão de quem as levaria pelo caminho do tráfico, do roubo e da prostituição. E, um dia, voltaria para as ir buscar, para que as irmãs pudessem estudar na Europa e ser independentes, para que a mãe andasse de cabeça erguida. Para que fossem livres e tivessem futuro. Prometeu concretizar os seus sonhos, provar como era bonita a luta quando tudo valia a pena.

Empacotou algumas roupas e um pouco do picante forte da mãe, que sabia a casa e a amor. Saiu de noite para se encontrar com o homem a quem tinha dado o dinheiro que o pai conseguira juntar antes de morrer; o homem a quem entregara a esperança de toda a família. Depois, enfrentou a escuridão do mar incerto.

Ainda lhe doía no sono o odor a terror e desespero que todos os dias sentia nele e nos companheiros de viagem. Mulheres, homens, crianças. Todos procuravam um futuro, um futuro qualquer. Mas alguns ficavam pelo caminho. Nesses dias, fechava os olhos para não ver os corpos e o sofrimento, só ouvia o choro e a desolação. Fantasiava com voltar a casa, perdia-se no medo da dúvida, teria tomado a decisão certa? Se também ele morresse, como aquelas pessoas, teria valido a pena? Gastara as poupanças numa oportunidade ilusória, quando poderiam ter aguentado mais uns meses, quando poderia até ter morrido, mas sempre de mão dada com a família, sempre com o corpo em casa. O sal e o sol secavam-lhes a pele, os lábios, as roupas duras e sujas, desorientavam-nos. Só sentiam o sabor da bílis na língua inchada. O picante da mãe perdera-se e ele rezou para não ser um sinal. O silêncio era de receio e falta de fé.

A viagem ficara-lhe gravada nos sentidos.

Quando chegou ao desconhecido onde imaginara outra vida, percebeu-se errado e estranho e diferente. A pele era demasiado escura, a fala tinha demasiado sotaque, o preconceito tinha demasiado peso. Sentiu que algo gelado lhe tocava no coração e que os sonhos se desfaziam entre os dedos. Estava sozinho e perdido. Mas estava ali e vivo. Não restava opção a não ser lutar, cumprir as promessas que deixara longe.

Em quinze anos, voltara à sua terra uma vez. Uma das irmãs tinha desaparecido, outra tinha casado, a mãe estava doente, muitos amigos tinham morrido. Ninguém lhe contou que horrores tinham vivido; ele soube imaginá-los. A casa em que crescera já não existia. Os risos tinham mudado. O toque, nunca. Mas percebeu que elas estavam lá e que seriam para sempre de lá, e que ele agora era de cá, até quando ninguém o deixava esquecer que era de lá. No último dia choveu e ele chorou.

Volta a mexer-se na cama, a dizer uma coisa qualquer, e o miúdo deita-se ao pé dele e cheira-o. A pele do pai cheira-lhe a casa, a família, a amor. Cheira-lhe à sua história, a coisas que ele ainda não reconhece. Tem a inocência de ainda não se saber errado e, por enquanto, continua a olhar para a Lua e a sonhar.

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