As histórias de super-heróis na televisão, actualmente, têm a tendência de se posicionar em duas categorias: ou é contada a origem do herói, ou é uma espécie de sequela. E a nova série da Marvel, Daredevil, não escapa a esta tendência de abordagem, principalmente, porque esta não é apenas a história de Matt Murdock, um órfão cego, que se torna no anjo da guarda de Hell Kitchen, mas também o início de um franchising inteiro de séries baseadas no enriquecedor universo da Marvel Comics.
No entanto, a série está cheia de surpresas e não me refiro apenas a algumas mortes inesperadas e a determinadas escolhas com certas personagens (algo que acontece em abundância, ao longo desta primeira temporada). Darevel demonstra estar completamente empenhado em criar um mundo fora do universo-padrão que a Marvel criou. Um mundo repleto de crime, corrupção e com algumas pessoas bondosas que pretendem transformar o mundo num local melhor. Apenas uma das personagens é que tem algo minimamente parecido com super-poderes, mas não é isso que a torna numa mais-valia no combate ao crime.
As linhas base da história são estas: Matt Murdock é, aparentemente, um jovem cego e que exerce advocacia juntamente com o seu amigo Foggy Nelson para defender os mais desprotegidos de Hell Kitchen, em Manhattan. Porém, se nos encontrarmos com Matt à noite, ficaremos a saber que é também um vigilante mascarado que procura aplicar justiça pelos seus próprios meios. Apesar de ter desenvolvido capacidades extrassensoriais depois de ter perdido a sua visão, continua a ser um desafio enfrentar a corrupção que reina na cidade, principalmente quando Wilson Fisk está focado em conseguir conquistar o submundo do crime nova-iorquino uma bomba, ou uma morte de cada vez.
Qualquer pessoa que goste de histórias de super-heróis já se deve sentir um certo cansaço por estar sempre a ver histórias sobre as origens de uma determinada personagem. Só que Daredevil faz a escolha acertada, ao decidir contar o passado de Murdock aos poucos, durante toda a temporada, enquanto nos apresenta cada vez mais a mesma Nova Iorque onde vivem o Homem de Ferro e o Capitão América. É bastante claro que o tipo de herói presente no universo Marvel construído no cinema não está no centro desta série, no entanto, o que a torna ainda mais apelativa é o facto de que eventos como o primeiro filme dos Vingadores são retratados como parte do contexto das vidas normais dos habitantes de Nova Iorque. Por exemplo, será que alguém faz ideia do que acontece, quando o Hulk anda à solta pela baixa de Manhattan? Muitos anos depois, há quem ainda esteja a limpar todos os estragos causados pelo gigante verde e os produtores usam este facto como uma forma de ligar a série a um franchsing milionário, mas também consegue trazer para o universo interligado da Marvel uma componente fascinante de realidade. Se o Hulk passa por entre um edifício, alguém terá de o reparar depois. E que tipo de corrupção e problemas poderão ocorrer desta situação?
Steven S. DeKnight, a mente criadora do mega-sucesso conhecido como Spartacus, é o responsável pelo desenvolvimento da série e, enquanto as gravações decorriam, afirmou que a sua grande inspiração foi The Wire. Apesar de não ter atingido o grau de subtileza desta, Daredevil encontra-se empenhada em explorar os elementos do seu universo que estão mais directamente relacionados com submundo do crime. Aliás, Matt e Foggy são advogados e não existe forma de contornar este elemento narrativo.
Uma das mais impressionantes conquistas que a série consegue alcançar é exactamente o modo como constrói o seu próprio universo dentro de um que já está perfeitamente estabelecido. Se nunca viste um filme da Marvel, mas queres ver esta série, não terás dificuldade alguma em ambientar-te. Especialmente, porque não existe uma única personagem que aparente estar fora do seu ambiente. As grandes estrelas do enredo são, sem qualquer sombra de dúvida, o vulnerável, mas também manipulador D’Onofrio, que será o futuro Kingpin, e Vondie Curtis-Hall no papel do repórter Ben Ulrich, uma personagem que traz um realismo energético às cenas em que entra. Ah! E num mundo perfeito Rosario Dawson estaria presente em todos os episódios de Daredevil (aliás, por mim, num mundo muito diferente, mas igualmente perfeito, ela seria o Daredevil). Mesmo assim, a actriz consegue trazer um pouco de sanidade e de balanço no meio do caos e da violência em que estes 13 episódios se desenrolam.
Tenho ainda de fazer referência a Charlie Cox, que consegue fazer de Matt Murdock seu e fazer-nos acreditar que é americano, quando na realidade é um actor de origem britânica. Ele funde-se tão perfeitamente com o papel que está a desempenhar que chegamos a esquecer-nos do terrível erro que foi o filme de 2003.
O único ponto negativo que posso apontar a Daredevil é que, apesar de ter definido um herói que procura defender os abusados e oprimidos, pode não ser verdadeiramente capaz de criar uma temática que faça da sua premissa divertida numa grande série de televisão, como a Netflix (onde é transmitido) nos habituou. Não me entendam mal, a série desenvolve muito bem os seus personagens, ao ponto de chegarmos quase a compreender melhor as motivações do vilão do que do herói, e oferece bastantes momentos de entretenimento. Só que não consegue ainda ser uma versão de super-herói da The Wire. E talvez seja parvo esperar isto de uma série de televisão, mas aquilo que mais adoro hoje em dia no panorama televisivo é o facto de que consegue surpreender-me e Daredevil deu bons sinais. Só me falta surpreender.