Con(sentimento)

Dezassete de julho numa Veneza apaixonante. E quantas haverá? Tantas quantos os estados de alma que nela estiverem, como ocorre em todas as partes do mundo. E, neste dezassete de julho, que não nos espante uma Veneza taciturna na janela do lado. Mas esta que agora nos importa, temo-la por quente, apaixonante.

Gôndolas rompiam o nascer do sol, cores vivas, jogos de luz capazes de nos engolir de uma assentada pelo deslumbre. Flores no parapeito, água por debaixo da janela emergida. Uma vista pitoresca. Para os sentidos, poesia erudita de palavras mudas admitidas mentalmente, que se esforce quem as queira escrever – a corrida inglória do artista. Bailam as cortinas, janela escancarada. Batia-lhes a claridade deixando a descoberto uma imensidão de pequenos pêlos translúcidos espalhados por todo o corpo. E nem tampouco é a descoberta feia, um belo aflitivo de tão angelical que se torna um humano, nestas circunstâncias de luz embebido, para o qual ninguém no seu perfeito juízo conceberia o termo. Angelical servirá propósitos mais dignos que descrever a essência humana, a acontecer – um asco de falácia.

Dormiam por esta hora, enquanto a claridade lhes batia, quatro futuros adultos. O dono da janela pintava-os de modo a que parecessem só corpos. Mudou-lhes a expressão prazerosa de quem já engoliu a ingenuidade junto ao resto. Tristeza, melancolia, máscaras deles mesmos. A janela do pintor que mascara criaturas, desabrochadas pelo prazer, em anjos. Proposta artística: quatro jovens, nus sobre lençóis amarrotados, de expressões vazias, ausência de felicidade. Partes expostas, pendidas, pelos púberes. Corpos de futuros homens e mulheres. São anjos, suspiros de Deus perdidos na imensidão do escuro de um mundo sombrio. Que beleza de crítica emergida na comunidade intelectual. O mundo embasbacado com a obra.

O pintor de traço puro, aclamado. Dentro de si, guardado, o homem de trinta e sete anos, bissexual com uma orientação erótica etária situada entre a hebefília (púberes) e a efebofília (adolescentes em idade mais avançada). Pobre pintor, um perfil erótico vincado desde que se lembra. Catastrófico efeito social, se isto se sabe! Há que mascarar! Que o mundo prefere a diabolização ao estudo e às respostas.

Escondeu, a tinta, o deboche de uma noite promiscua. Oh, promiscuidade, o termo volátil. Imaculou-lhes os rostos, abençoada aptidão artística. Jovens criaturas nuas, sexualmente belas aos seus olhos. Motivo de sua libido. Lolitas, masculinas e femininas. Quando o pintor espreitou o mundo pelo ato de nascença, que outro não há para o vir espreitar, nem deveria estar sendo equacionado por quem os conceberia, o nascimento destes quatro que originariam este quadro. Ainda são vinte e dois os anos que separam o pintor dos pintados.

“Que se meta a tela dos suspiros de Deus na Basílica, abençoados”, assim quiseram. “Os crentes que orem à melancolia da pureza e tratem o mundo sombrio para que sorriam os anjos enviados de Deus. Ámen.” Ao pintor tanto se lhe dava o local da exposição. Olhou as tintas e as máscaras, “demónio lascivo” assim haveriam de dizer soubessem todos da missa à metade. Cresceriam os quatro ali expostos, dentro em pouco não mais importariam ao pintor, tornar-se-iam adultos, uma lástima a seu ver. Fica a tela. Um olhar de relance à sua obra, fugindo do olhar “com olhos de ver”, que está muita gente na cerimónia. Outros tantos devotos escolhiam o relance, o óbvio: a fuga à dilatação da pupila, evidência de excitação. Inapropriado deixar acontecer debaixo do nariz do Altíssimo. E já aqui estão juntos mais efebofílicos que aqueles que se imagina. Vieram de toda a parte, de todas as profissões, de todos os estratos sociais.

Hora de orar. Que desça o Altíssimo para deitar o olho a este viveiro de pecado cheio de mentes que desconhecem ainda que o demónio dorme na ausência de conhecimento. Na fila traseira, os quatro, recordavam o fim da tarde em que piscaram os olhos ao pintor, medindo-lhe o desconforto. Ah, a evidência do poder sobre o homem dos pincéis. Esfregaram as mãos, pediram-lhe que os pintasse, nus. A excitação da experiência. Entrelaçaram-se entre eles lascivamente, assim lhes deu o desejo e a vontade. Olhou-os o artista sem se intrometer, não tivesse um deles suplicado por suas carícias e assim se tinha deixado estar. A saber-se desta orgia aos olhos de um homem que não é Deus, que os pintou pela beleza sexual dos corpos e a sua orientação erótica, dar-se-ia o escândalo do doente sobre a ingenuidade. Encarcere-se o demónio das tintas! Importa legalmente a idade cronológica, sobre a idade biológica destes nus ninguém se importará em perceber. A irrelevância dos pensamentos dos menores, das vontades, das mentes e ei-lo ao desconforto filosófico: o debate da idade do consentimento.

Ah, o construto da inocência. Às doze badaladas de que dia a perderam estes nus? Não se perguntaria ninguém nestas circunstâncias. O abuso de um homem sobre os suspiros de Deus.

Não passavam mais de duas horas desde o momento da oração. Os machos da tela estupravam, num beco sujo, uma mulher de vinte e oito anos. Serão punidos pelo dano sexual causado, evidentemente! É preciso averiguar, saber das suas motivações, conhecer-lhes a mente. As mesmas mentes que seriam socialmente desconsiderados por terem estado envolvidos no prazer sexual do pintor. Contradições sociais.

É preciso desbravar a mitologia da sexualidade humana. Trazer à luz os impulsos existentes, o estudo e a ciência, substituindo a doença moral pela saúde mental criando mecanismos de apoio ao invés da diabolização.

O debate, a moral, a ciência, o estudo, o inapropriado, o complexo, o dano. A natureza humana. A complexidade da sexualidade humana. A urgência da reflexão.

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