Ela chegou ao nosso pueblo num Domingo de Verão. Mesmo a tempo de a vermos, ao sairmos da missa. Chegou com uma mala no ombro, com um vestido branco muito curto e o cabelo ruivo e selvagem solto, despenteado, sujo de pó e terra. Ficámos todos a olhar, desde os mais velhos aos mais novos. Aos meus seis anos, eu nunca tinha visto ninguém tão bonito.
Dirigiu-se até nós e perguntou onde era a casa do Don Mariano. Conchita, era o nome dela, e era neta dele. Ninguém soube dizer-lhe que Don Mariano tinha morrido na semana passada. Excepto a minha irmã mais velha, Rosario, que lhe deu a notícia ali, em frente a todo o pueblo que tinha acabado de sair da missa. Conchita não chorou, nem pareceu surpreender-se. Engoliu em seco e assentiu, como que resignada. Mas o olhar ficou-lhe mais triste.
“Podes ficar connosco, filha, para não estares sozinha” disse-lhe a minha mãe. Talvez tivesse pena da rapariga. Ou talvez tenha sido para se desculpar da brutalidade da notícia dada pela minha irmã. Mas Conchita aceitou o convite, e rapidamente se tornou amiga da minha irmã Rosario.
“Josefa, ouve o que te digo” ouvi várias vezes a nossa vizinha Carmela dizer à minha mãe “aquele cabelo vermelho é do inferno, só te vai trazer problemas.”
“A superstição é um pecado” brincava a minha mãe.
“Não é superstição, é do conhecimento de todos e há provas que os ruivos não têm alma” justificava-se Carmela.
Eu ouvia, mas não entendia. Como é que Conchita podia ser má? Eu adorava chegar da escola e vê-la no sofá a falar com a minha irmã, ou a ajudar a minha mãe na cozinha.
“Então, chiquillo?” dizia, apertando-me a bochecha e fazendo beicinho.
Eu nem sabia responder, ficava vermelho e corria de vergonha para o meu quarto, ou ficava muito tempo parado a olhar para ela.
“Acho que o Manuel está apaixonado por ti” brincava a minha irmã, fazendo com que eu ficasse ainda mais envergonhado e aflito.
A primeira vez que a curiosidade me mordeu os pés, foi num Sábado pela tarde, com o sol alto. Os meus pais tinha-me deixado sozinho em casa com elas para irem à cidade fazer as compras grandes do mês. Fiquei a ver televisão, um filme qualquer que não percebia, mas tinha-me negado a ir sozinho para o quarto. Só queria estar com elas. E, umas vezes, ao olhar furtivamente para Conchita, vi algum roçar das mãos uma na outra, ou sorrisos que me pareciam estranhos, e que anos mais tarde percebi que eram de cumplicidade. A minha irmã apanhou-me a olhar, e segredou qualquer coisa no ouvido de Conchita. Ela aproximou-se de mim e deu-me um beijo na bochecha, deixando-a quente e húmida. Deixando-me com calor e feliz.
“Fica aí, nós já voltamos” avisou-me Rosario.
E nesse dia obedeci. Fiquei sentado no sofá, distraído pelas imagens do filme, enquanto elas foram para o quarto, e nem senti muita curiosidade. Mas houve outras vezes em que fiquei de novo sozinho com elas, ou que a minha mãe estava na cozinha e e nós estávamos os três no quarto, e que a minha irmã me pediu “espera aí”, mas eu segui-as. Para o quarto ou para a casa-de-banho, ia silenciosamente atrás delas. Ouvia a tranca da porta, e colava o ouvido. Era uma curiosidade inocente, acredito eu, ou se calhar já era um instinto de que havia um segredo a descobrir. Colava o ouvido atrás da porta, devagar, com cuidado, e ficava a ouvir. A ouvir uma respiração cansada, como quando corria atrás dos meus amigos na escola para jogar à apanhada. A ouvir gemidos, como se se magoassem, e coisas a cair no chão. Ao fim de alguns segundos começava a sentir-me estranho, incómodo, sem perceber, e voltava a correr para onde elas me tinham deixado.
Numa altura em que beijos nos lábios eram proibidos na minha idade, e beijos com língua um mistério total e que mal imaginava que existisse, vi uns quantos furtivos, na minha admiração louca por Conchita, que me impedia desviar os olhos dela. E comecei a perceber. Não sei bem o que percebia, mas via que a minha irmã e a amiga tinham algo mais do que eu com os meus amigos, tinham algo como os meus pais, como os meus tios, como alguns adultos que conhecia. Via-o furtivamente, claro, e algum instinto me impedia de contar a quem quer que fosse.
Mas um dia, sem querer, chamei a atenção da minha mãe. Ela viu-me embasbacado de novo, a olhar para Conchita, enquanto eu estava encostado à mesa da cozinha quando ela estava a cortar batatas para o jantar. Olhou para mim e, abanando a cabeça e rindo, olhou para Conchita. Talvez só por olhar, por confirmar, ou talvez para brincar com ela e comigo. Mas quando olhou, sem querer, viu um desses beijos furtivos que eu estava farto de ver, e o sorriso fugiu-lhe dos lábios.
Todos nos apercebemos do que ela tinha visto, porque a faca caiu ao chão com um barulho metálico, como quebrando o passado que tinha existido até aí, como finalizando uma etapa. Era um barulho final, de morte, tão terrível como gritos e discussões, mas de certa forma pior, mais frio.
No dia seguinte, Conchita foi embora tão repentinamente como chegou.
Durante dias vi a minha irmã chorar quem nem louca, tentando fazer os meus pais entender que elas se amavam, procurando por Conchita em toda a cidade. E depois ela também foi embora, a minha irmã Rosario.
A nossa vida a partir daí quase que foi fingida. As pessoas falavam, mas eu era demasiado pequeno para me sentir afectado ou magoado com elas. Só sentia falta da minha irmã. Via os meus pais magoados, tristes e perdidos. Nem uma palavra da parte de Rosario durante anos, ou se houve eles ignoraram, talvez tenham rasgado as cartas e desligado o telefone. Era como se ela tivesse morrido, ou pior, como se nunca tivesse existido, e passado uns meses eu vi que não adiantava perguntar por ela, porque para os meus pais ela não existia mais.
Talvez Rosario tivesse ido atrás de Conchita. Talvez tenha só fugido do mal-estar, da aldeia, da nossa família. Talvez tivesse encontrado alguém, outra pessoa. Não sei.
Olho para o relógio.
Mas dentro de meia hora, ao fim de tantos anos, quando olhar para os olhos dela, talvez ela me queira contar.