Co-adopção

Vou começar por um exemplo, apenas de quem nos últimos dias se tem expressado contra a co-adopção por homossexuais. Marinho e Pinto sobre a co-adopção e a “natureza das coisas”. Um exemplo apenas de muitas mentes que se colocam contra a adopção de crianças por casais homossexuais e usam até de uma eloquência e emotividade que não se lhes viu sobre outros assuntos.

Alarvidades de quem tem uma noção de si próprio muito maior do que a confirmada inteligência que… desilude. Este homem já deu fruto a algumas ideias interessantes no passado. Algumas foram muito para além do tempo e do momento, foram incompreendidas. Contudo, tem-se vindo a tornar um enfant terrible da nossa sociedade, sem o mérito de quem se fundamenta e até, o que me espanta, pela negativa, com um conservadorismo que desmente a postura moderna e progressista por que tanto se esforça.

Ora o “o homem não pode” isto ou aquilo… mas pode, afinal.

A confusão nuclear de muita gente é esta: os defensores da co-adopção estão egoisticamente interessados em si mesmos e não preocupados com os direitos das crianças. Sei que é um pensamento até rejeitado, ou violento, mas esses direitos das crianças não nascem com elas. É a sociedade que lhos dá. A todos nós. Crianças e adultos. A ideia de conquistarmos os nossos direitos é legítima, mas somos nós que damos socialmente direitos a quem nos pode dar direitos, o que inclui as crianças, que, como é trivial, não podiam ter lutado por eles. Esses direitos saíram das nossas cabeças de adultos e são, obviamente, legítimos também. E, por o serem, podem ser dados de muitas formas, uma delas através da possibilidade de serem amadas, mesmo por um casal homossexual (e o “mesmo” já está a mais).

Teria de voltar a explicitar o que penso e tanto escrevi já sobre o egoísmo, mas teria de voltar a outras raízes culturais e intelectuais. Regressar à génese de muitos dos nossos pensamentos, às origens do que somos, fruto não apenas da nossa própria experiência de vida, mas herdeiros de pensamentos de gente que nem conhecemos, de gerações de progenitores nossos até um recuo de centenas de anos. O que somos e pensamos, como funciona o nosso cérebro, é o resultado de uma herança biológica no que respeita a este nosso maravilhoso cérebro, como de memes (transmissores e replicadores culturais, os equivalentes culturais aos genes, biológicos) de muitas gerações antes de nós. E é esse um dos nossos grandes problemas, com o que se acumulam em nós medos, barreiras e preconceitos. O egoísmo é um preconceito. Com o egoísmo nós amamos e somos amados. O resultado de um amor bem-sucedido vem de dois egoísmos que se entendem e convivem bem.

O egoísmo de um casal homossexual que pretende adoptar uma criança não perfilhada, ou órfã, pode, não tem de (como com um casal heterossexual) ser o maior benefício que essa criança consegue na vida. Por esse egoísmo, a criança que não tinha família, pode passar a ter uma vida feliz, ou uma vida apenas. O processo em nada difere do de um casal heterossexual. Nada. Perversa é a ideia de se pensar e se tentar difundir que um casal homossexual tem menos atitude social, menos compostura e, até, piores costumes. Quando todos conhecemos tanta desgraça, miséria, violência física e psicológica todas praticadas por heterossexuais.

Muito mais perverso é pensar sequer que um casal heterossexual pretender educar um filho adoptado na mesma preferência (não é orientação, como de forma algo leviana podemos por vezes dizer) sexual. Porque teria de assim ser? E se fosse? Que temos nós a ver com as preferências dos outros?

O amor de um casal que adopta não é diferente de heterossexuais para homossexuais, talvez só o sendo, eventualmente, na vivência de amor genuíno entre homossexuais, tantas vezes ausente em casais hetero, e com tudo o que isso influencia o desenvolvimento afectivo e emocional de uma criança. Quantas vezes um casal heterossexual não tem vida amorosa e emocional equilibrada e… feliz e uma das razões, ou desculpa, é a ausência de um filho? E claro que o mesmo pode acontecer com qualquer natureza de casal.

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O erro, conservador e injusto, é precisamente pensar e dizer que um casal heterossexual é mais egoísta, ou fazer como Marinho e Pinto, afirmar que há uma ordem “natural” nas coisas e que essa é insubstituível em homossexuais (os mesmos que por terem escolhido as suas preferências e vivências vivem com mais amor do que os hetero). Dizer que uma mãe não substitui um pai é uma parte da verdade apenas. Porque tantos heterossexuais, cada semana, cada dia e cada hora mais, se vêem na vida sozinhos a substituir a mãe, ou o pai que seguiu outro caminho e tem mesmo de ser substituído. Pode discutir-se a “natureza” das coisas, pode.

Porém, é essa discussão inútil que faz por ignorar tantas outras realidades. É, por exemplo, natural ter trabalho e poder pagar despesas e viver sem problemas. É, por exemplo, natural ser-se respeitado, no trabalho, na família e… no amor, que na esmagadora maioria dos casos é dado e pouco recebido. E seria… natural o contrário, mas não é. “É a vida!” Tanta coisa é natura e não a temos, ou não queremos ter.

O ser humano já evoluiu um tanto. Muito, numas vertentes, e tão pouco em tantas outras. Uma dessas, a capacidade de nos libertarmos, sem rejeitarmos, propriamente, dos memes herdados que nos limitam intelectualmente. Porque pode sempre surgir alguma situação totalmente nova e só estarão preparados os de mentalidade aberta e evoluída, os que adoram pensar e amam o pensamento de outros, pelo fascínio de ideias distintas das nossas. Pelo fascínio por outras mentes, desde que não produtoras de ideias que pretendam aniquilar as nossas, através da restrição ou limitação da nossa liberdade individual de pensar e recriar o pensamento e, com ele, o mundo.

É essa atitude distinta, que se interroga sobre o pré-concebido, sobre o preconceito, a tradição, o que antes havia sido pensado, escrito e dito, que nos permite saber enfrentar as mudanças que a sociedade e o mundo nos dão. E este assunto da co-adopção (um termo que me suscita dúvidas aliás, até ao dia em que, de forma “natural”, falemos em adopção, casamento e divórcio, indistintamente, sem qualquer ligação a sexo ou preferências sexuais).

O mal de tudo isto, porém, reside na origem religiosa do nosso modo de vida. E pouco mais. E disso nos devíamos libertar e não apenas usarmos de outro egoísmo, esse sim perverso e condenável, que é o de a outros impormos o nosso modo de pensar e viver.

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