O desafio lançado pelo Miguel – cinco textos sobre os “meus” filmes em cinco décadas, um texto por década – abriu a porta aberta para a maior das liberdades: viajar sobre as melhores décadas do Cinema, correndo o risco de a decisão atrair menos leitores, mas permitindo furar a (fortíssima) corrente que considera o mundo desde o dia em que nascemos, como se antes pouco existisse digno de valor.
Os Filmes que me Marcaram
Anos 30
A explosão do Cinema aconteceu na gloriosa década de 30, e no curto espaço de que disponho, pouco mais será possível do que elencar as obras que me marcaram. Resistindo ao salto para o melhor ano cinematográfico de sempre – 1939 – lembro Revolta na Bounty de 1935, com Clark Gable e Charles Laughton, clássico do cinema de Aventura e uma das primeiras surpresas de que tenho memória, quando o vi com a minha avó e constatei ser possível a um jovem – dez? doze anos? – gostar de um filme antigo (vi a versão colorizada, algo que hoje abomino, mas naquela altura foi uma porta foi aberta).
Há títulos que seguram filmes e ficam guardados para sempre, mesmo que a obra se esboroe pela linha do tempo: Uma Noite Aconteceu é um título maravilhoso. De novo Clark Gable, desta vez ao lado de Claudette Colbert, numa comédia deliciosa saída da imaginação de um mestre que voltará a entrar nestas considerações, Frank Capra, e o primeiro filme a receber os cinco prémios principais da Academia.
Da Alemanha, Fritz Lang superou-se com M em 1931, uma história que, na esteira do Expressionismo, conta a perseguição a um assassino de crianças mobilizada por toda a cidade, onde nem os criminosos se furtaram à caça ao Homem. Peter Lorre tem o papel de uma vida e o assobio mais aterrador.
Avancemos para o ano dourado de 1939, quando William Wyler elevou Laurence Olivier n’O Monte dos Vendavais; Vivien Leigh e Clark Gable fizeram História juntamente com Hattie McDaniel em E Tudo o Vento Levou; o mesmo Victor Fleming completou a sua carreira nesse ano com o mundo encantado que viveria para sempre n’O Feiticeiro de Oz; James Stewart tem um tour de force noutra obra-prima de Frank Capra, Peço a Palavra; Charles Boyer e Irene Dunne estreiam a primeira versão do clássico Ele e Ela, eternamente refeito com o encontro final no topo do Empire State Building. Do lado de cá do Atlântico, Jean Renoir pinta-nos o fim de uma época com uma comédia de costumes simplesmente genial: A Regra do Jogo é daqueles filmes que apetece emoldurar para olhar só porque sim. Neste ano houve mais, mas estou a guardá-los para não queimar os cartuxos todos desta vida de uma vez.
Um ano antes, Ernst Lubitsch criava uma das grandes comédias românticas (foi um dos maiores mestres do género) com A Loja da Esquina, onde Margaret Sullavan e James Stewart se apaixonam um pelo outro sem o saberem.
Charlie Chaplin, um dos últimos resistentes do mudo, e que sem nada dever a ninguém entrou silenciosamente pelo sonoro com a categoria reservada aos melhores, aguentou a passada com o grupo da frente durante toda a década. Vi Luzes da Cidade (1931) com a minha avó e Tempos Modernos com a minha tia e as minhas irmãs. Se durante muito tempo, o gag do operário na linha de montagem que sai da fábrica com um esgotamento nervoso vendo em todo o lado parafusos para apertar foi o que me ficou, hoje olho para a história de amor vivida pelo vagabundo de Luzes da Cidade e é sobre esta maravilha que recai a minha escolha.
Um dos nomes maiores da década, pela qualidade que imprimiu às poucas obras que concebeu, foi James Whale. Tendo-se especializado no cinema de Terror, um género que melhor (se) serviu (d)o mudo, Whale deu vida a personagens irrepetíveis em Frankenstein, O Homem Invisível (como é possível aqueles efeitos visuais em 1933?) e A Noiva de Frankenstein.
Da Alemanha Nazi, Leni Riefenstahl deu uma lição de Cinema ao resto do mundo quando filmou o Congresso de Nuremberga de 1934 do Partido Nacional Socialista. Mais tarde, Frank Capra, durante o esforço de guerra em que estava incumbido de desfazer o mito do III Reich, admitiria que num primeiro momento assumiu não ser possível fazer nada melhor do que aquilo em termos de propaganda. Com argúcia, utilizou a vantagem do adversário a seu favor e fugiu pela via possível, parodiando a obra da grande cineasta alemã. O Triunfo da Vontade rompeu o tempo e as trevas de uma época para crescer numa obra monumental, não só da década, mas de sempre.
Não podia terminar a década sem abraçar dois realizadores que, tendo ajudado a moldar o Cinema na sua forma mais permanente, tiveram uma importância primordial no meu crescimento. Curiosamente, foram os dois realizadores que, num acto revolucionário na década de 50 em França, por parte dos críticos do Cahiers do Cinema (que mais tarde se converteriam nos realizadores da Nouvelle Vague), foram apontados como Autores quando a sua vertente era eminentemente comercial: Alfred Hitchcock e Howard Hawks.
Do primeiro destaco a importância d’O Homem que Sabia Demais, visto já depois de conhecer a maior parte da obra do director britânico. O filme de 1934, revelou-me quão cedo e com tão parcos recursos Hitchcock começou a manipular os meios e os espectadores. De novo Peter Lorre e a cena mítica no Royal Albert Hall. O filme viria a ser refeito pelo próprio já nos Estados Unidos, mas foi esta a versão que marcou o meu percurso. No ano seguinte, Hitchcock tem o primeiro filme que ficou na galeria (não o seu primeiro grande filme): Os 39 Degraus, obra de espionagem que também vi depois de conhecer o trabalho do grande director inglês, e que fechou o conjunto dos seus “obrigatórios”.
De Hawks dos anos 30, saliento As Duas Feras: vi as aventuras de Katharine Hepburn e Cary Grant numa reposição na Gulbenkian, e os ingredientes do género no Cinema da época estão lá: a guerra dos sexos, a comédia, o romance subentendido e uma riqueza nos diálogos que faz desta obra um marco obrigatório, além da perfeição com que os dois protagonistas contracenam com um… leopardo durante grande parte do filme!